sábado, 21 de junho de 2008

SANTA MARIA DE CÁRQUERE, EM RESENDE:

Santa Maria de Cárquere, em Resende: A "cura milagrosa" do nosso primeiro rei e os "primeiros passos" da nossa história


(Comunicação na Academia Portuguesa da História, pelo Pe. Dr. Joaquim Correia Duarte, em 09 de Abril de 2008)

Ex. ma Senhora Presidente da Academia

Senhores Académicos e ilustríssimos confrades

Minhas Senhoras e meus Senhores

Como São Paulo aos Coríntios, também eu subo pela primeira vez a esta tribuna ansioso e “a tremer deveras” [1]. Tenho consciência das minhas humildes raízes, pois nasci e sempre tenho vivido nas encostas do Douro, entre o rio húmido e a serra agreste, sem grande tempo para frequentar Bibliotecas e Arquivos e sem condições para o trabalho intelectual de investigação, como se espera dum membro da Academia Portuguesa da História.
No entanto, ocupo hoje este lugar, porque há pouco mais de um ano, exactamente a 14 de Fevereiro de 2007, fui eleito Académico Honorário por votação unânime dos senhores Académicos de Número então presentes, na sequência do parecer favorável do Conselho Académico e depois de feita a apresentação do meu currículo pelo P. Henrique Pinto Rema, meu honrado conterrâneo, que muito estimo e profundamente admiro.
É uma honra que muito prezo e um privilégio que nunca poderei olvidar.
A única promessa que lhes posso fazer, e que é também sinal da minha enorme gratidão, é que irei tirar das minhas fraquezas força, para honrar e prestigiar a nossa ilustre e aureolada Academia, em todos os lugares e em todas as circunstâncias.

Bem hajam!

Minhas senhoras e meus senhores:

De novo ao jeito de Paulo de Tarso, quando chegou à culta Atenas e subiu ao alto estrado do Areópago, venho falar-lhes hoje de uma ”terra desconhecida” [2], não obstante a sua riqueza em história, a sua cópia de lendas e tradições, a sua generosidade em proveitos e em bens e a sua exuberância em belezas naturais.
Refiro-me a Cárquere, a Santa Maria de Cárquere, no meu muito querido concelho de Resende.

Situação Geográfica e antiguidades de Cárquere

Cárquere é uma das quinze freguesias do actual concelho de Resende e uma das 217 paróquias da diocese de Lamego.
Situada na meia encosta, entre a doçura e a pacatez actual do Douro e aspereza da serra do Montemuro, a 520 metros de altitude, a freguesia tem oito quilómetros quadrados de área geográfica e habitam-na cerca de mil almas.
O “Medorno” ou “Medorro” de Cárquere – assim se denomina um outeiro situado nas proximidades da igreja e do mosteiro – tem todos os sinais indicativos da existência de um antigo castro pré-celta.
Os romanos, chegados aqui no século II a. C., terão aproveitado a referida “citânia” para aí estabelecerem um “oppidum”.
Dos tempos da colonização romana os vestígios são tão abundantes em Cárquere, que bem se pode considerar o local uma das mais ricas estações arqueológicas do noroeste português.
Os vestígios mais ricos, mais notáveis e mais abundantes são as moedas e as lápides funerárias.
O jesuíta Eugénio Jalhay deslocou-se a Cárquere em 1950, a fim de estudar essas lápides. Num opúsculo (separata da revista Brotéria) o competente investigador refere ter visto nas cercanias da igreja 12 estelas funerárias com inscrições em latim. Comunicado o achado à Junta Nacional de Educação, Eugénio Jalhay e o seu companheiro Afonso do Paço receberam ordens para voltarem a Cárquere, estudarem melhor o assunto e encaminharem as 12 estelas para o Museu Etnológico Português, onde já estavam depositadas 42, provenientes também de Cárquere [3].

Para além das lápides, o P. Jalhay refere ainda que, na sua visita a Cárquere, o pároco lhe mostrara “mais de cem moedas romanas”, quase todas do Baixo-Império.
Esta abundância de vestígios da romanização em Cárquere não é difícil de explicar. Segundo Gil Mantas, nas proximidades de Cárquere passava a famosa “Via Caurium”, que subia de Mérida para Braga, seguindo pelas Caldas de Aregos que fica logo a seguir a Cárquere, e, já a norte do Douro, por Tongóbriga, actual lugar do Freixo, em Marco de Canavezes [4].
Mais importante ainda, para o tema que hoje nos ocupa, é uma estatueta de Diana que Frei Teodoro de Melo, em manuscrito de 1733, nos diz ter sido achada por uns “rústicos” nos passais dos padres Jesuítas em Cárquere.

Dando-nos referência da inscrição que nela havia, diz-nos Teodoro de Melo que numa das duas partes que resultaram da fractura se podia ler DIANA SACOELO FLAVA e na outra, CARCAV F. A. LXXV.

A interpretação do religioso foi então a seguinte:

…e sendo ambas uma pedra da altura de cinco palmos e dois de largo, em que se deixa ver de relevo, ainda que um pouco polida, a figura de Diana que estava no seu pequeno templo ou capela sem tecto, que é o que significam as primeiras palavras, significando as segundas Carcavellus a fez anno de 75” [5].

Sendo assim, temos nessa estatueta uma importante referência ao culto de Diana em Cárquere e à existência de um pequeno e rude templo, erguido em honra da deusa das florestas e da caça.

Os princípios do Cristianismo
Embora o primeiro anúncio do Evangelho e as primeiras adesões ao Cristianismo tenham acontecido na Península Ibérica nos finais do século I ou princípios do século II da nossa era[6], eu penso que a organização intensa das comunidades cristãs rurais no noroeste peninsular, e mais concretamente na região de Resende, só terão acontecido ao longo do século VI, já no domínio dos Suevos convertidos à fé cristã por São Martinho de Dume.
A atestar esta hipótese, há a presença de Sardinário - o primeiro bispo de Lamego com existência documentada - no II Concílio de Braga, em 572, assinando as actas [7].

Ora, parece que a principal actividade e preocupação do referido bispo na diocese consistiu na multiplicação das paróquias com administração própria, algumas de carácter monástico [8].
Tudo isto nos ajuda a suspeitar que a primeira comunidade cristã organizada em Cárquere e a construção do primeiro templo cristão se devam situar na época suevo-visigótica.

Porque não substituir então aí o culto de Diana, filha de Júpiter, uma das mais perfeitas divindades do Olimpo e a mais pura e mais casta das divindades, pelo de Maria, a Imaculada, a Eleita de Deus e a Mãe do Redentor?

O orago da igreja é Santa Maria de Cárquere

A corroborar tudo o que fica dito, note-se a existência em Cárquere de minúscula e preciosíssima escultura em marfim, de 29 mm de altura e 14 de base, cujas formas e expressões denunciam um trabalho de muita antiguidade. A escultura representa uma Senhora com o Menino sentado sobre o joelho esquerdo, de coroa encordoada e denticulada. O Menino segura um livro na mão esquerda e abençoa com a direita.
Vergílio Correia que viu a imagem em 1929, pergunta se não estamos perante uma imagem visigótica, e comenta assim:

“Como nos sentimos impressionados sob as arcadas de uma igreja primitiva, perante uma imagem vista e adorada por reis, richomens e povo de séculos remotos, que foi talvez levada como talisman, no seu minúsculo relicário de prata, para o meio das refregas contra os mouros, que correu por ventura as sete partidas do mundo, de um mundo que nós não conhecemos, nem conheceremos nunca?·9]

A Igreja e o Mosteiro

Cárquere insere-se no contexto do actual concelho de Resende, local que teve uma singular importância nos primórdios da nacionalidade, nomeadamente os três maiores centros populacionais do nosso tempo.
São Martinho de Mouros recebeu foral de Fernando Magno em 1057, depois de o célebre monarca ter reconquistado o seu castelo aos Mouros, juntamente com o de Lamego. Tal foral, renovado por Afonso VI de Leão, veio a ser confirmado pela Condessa D. Teresa, em 1121, nas vésperas da sua contestada e irregular união com Fernando Peres de Trava. A famosa “Honra de Resende”, que abrangia Cárquere em grande parte, recebeu privilégios de Honra e Couto logo depois da Batalha de São Mamede; Caldas de Aregos, antiquíssimo julgado medieval que abrangia então alguns lugares de Cárquere, foi contemplado com uma preciosa Carta de Foral, assinada por D. Afonso Henriques em 1183, dois anos antes da sua morte, por interferência do “alvasil” Nuno Sanches, então “tenente” da “terra” de Aregos por nomeação do próprio Fundador.
Da igreja actual de Cárquere, que tem capela-mor gótica e corpo quase todo manuelino, fazem parte três importantes estruturas com sinais indiscutíveis do românico: o Conventinho, a torre sineira que abunda em siglas, e a capela funerária dos senhores de Resende, descendentes de Egas Moniz de Ribadouro e seus sucessores na posse da famosa Honra do mesmo nome. Esta última, fria e arcaica, tem no seu interior quatro arcas tumulares de granito, rudes, pesadas, trapezoidais, com as armas dos “Resendes” esculpidas nos tampos.
Entre parêntesis, não resisto a lembrar-lhes que Eça de Queirós, escolhendo Resende para cenário de quatro das suas mais conhecidas obras, se refere a estes túmulos, na “Ilustre Casa de Ramires”, nos seguintes termos:

“Para os fundos do vale, clara também no luar, era a igrejinha de Craquede – Santa Maria de Craquede – resto do antigo mosteiro em que jaziam, nos seus rudes túmulos de granito, as grandes ossadas dos Ramires Afonsinos”
[10].
Muitos autores, observadores atentos de estruturas tão arcaicas e conhecedores das Crónicas do século XVI e XVII, afirmam que a igreja e o mosteiro são obra de Egas Moniz ou mesmo do Conde D. Henrique; e dizem que estes as terão mandado construir em agradecimento à Senhora de Cárquere, pelo milagre que Ela fez em favor de Afonso Henriques, quando ele era ainda um pequeno infante de quatro ou cinco anos.
Chegamos assim ao ponto central e mais importante desta humilde e despretensiosa comunicação.

É tradição local, que vem correndo de pais a filhos ao longo dos séculos, sem nunca se ter perdido, que o filho do Conde D. Henrique, sendo ainda criança, fora curado por Nossa Senhora de Cárquere.

Diz o povo que D. Egas Moniz, preocupadíssimo com a deficiência congénita do príncipe (que lhe fora entregue pelo Conde seu pai para ele o criar e educar), rezava fervorosamente à Virgem Mãe, a pedir a cura do menino. Até que um dia, estando o aio no seu Paço de Resende, a Senhora lhe apareceu em sonhos e lhe disse que subisse a Cárquere, pusesse o príncipe em cima do Seu altar e Lhe acendesse duas velas. Cansados da subida e adormecendo na vigília, só o Príncipe se deu conta de que uma das velas, caindo, pegara o fogo às toalhas e ao altar. Tendo-se esforçado ele próprio por evitar o incêndio, e erguendo-se para o conseguir, sentiu-se logo curado e chamou alegremente pelos demais, e todos deram graças a Deus pelo sucedido.

Sempre em Cárquere e em Resende os pais e os avós contaram esta história aos filhos e aos netinhos. A tradição não se perdeu, e julgo que nunca se perderá.

Para além desta constante tradição do povo, o “milagre” encontra-se referenciado em diversos cronistas do século XVI e XVII, nomeadamente Duarte Nunes de Leão na “Crónica do Conde D. Henrique” [11] , Faria e Sousa em “Europa Portuguesa” [12], Baltazar Teles na “Crónica da Companhia de Jesus” [13] , Agostinho de Santa Maria no “Santuário Mariano” [14], Nicolau de Santa Maria na “Crónica dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho” [15], Pais Viegas na “Vida de El-Rei D. Afonso Henriques” [16], António de Vasconcelos na “Descriptione Regni Lusitanni” [17], Duarte Galvão, na “Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques” [28], Frei Leão de S. Tomás na “Benedictina Lusitanna”[19], Frei Bernardo de Brito na “Crónica de Cister” [20] e Frei António Brandão na “Monarchia Lusitana” [21].

Todos os citados relatos do “milagre” têm sido postos em causa.
E
fectivamente, (pese embora o seu pioneirismo de tentarem pela primeira vez em Portugal redigir uma história geral da nação, ultrapassando os historiógrafos dos séculos XV e XVI que se limitavam a escrever as crónicas dos acontecimentos ligados a uma ilustre personalidade), quer os épicos seiscentistas, quer os historiadores de Alcobaça, motivados pelo seu amor à pátria (que então se encontrava humilhada e mesmo amordaçada), e influenciados pelo mito sebastianista que augurava para Portugal um destino glorioso e eterno, caíram frequentemente na tentação de misturar a história com as lendas, e mesmo de inventar documentos ou apresentar como factos o que não passava de produto de imaginações exuberantes.

Os autores que põem em questão o “milagre” e o negam em absoluto baseiam-se nos seguintes argumentos:

1.º Os textos que referem o “milagre” foram escritos nos séculos XVI e XVII, quatro ou cinco séculos depois do suposto milagre ter acontecido;

2º As crónicas que narram o “milagre” foram redigidas por frades ou monges pertencentes a famílias monásticas que estiveram na posse do Mosteiro de Cárquere;

3º É muito estranho que um facto tão importante na História de Portugal não tivesse sido anotado nos documentos da época, já que dele dependia de certo modo o futuro da Nação: um rei com uma deficiência tão incapacitante nunca poderia levar Portugal à independência e muito menos afastar a moirama e alargar o território até ao sul.

4º Tanto a narração dos cronistas como o relato oral do povo envolvem algumas contradições de datas, tais como a afirmação de que o príncipe foi curado aos cinco anos e que o seu pai levantou a igreja em memória do milagre, quando a “Crónica dos Godos” atesta que o Conde D. Henrique faleceu quando o filho tinha apenas dois anos.

5º Alguns autores, valendo-se de outro recurso, negam que Egas Moniz tenha sido senhor de Resende e que o Príncipe aí tivesse estado alguma vez.

Com base nos argumentos que acabo de enumerar, os estudiosos concluem que a narração do famoso “milagre” se deve atribuir apenas à fecunda imaginação dos monges do mosteiro, interessados no engrandecimento da Ordem e no desejo de atrair peregrinos e romeiros ao lugar.

Face a tudo isto, analisemos atentos e desapaixonados os seguintes dados:

1º Não encontrei nenhum estudioso (mesmo os que contradizem o milagre em absoluto) que negasse a deficiência do príncipe, o que é verdadeiramente notável. Como souberam de tal deficiência? Porque razão nela acreditam?

2º Não era de esperar que o milagre, a ter acontecido, fosse logo passado a escrito, em tempos tão remotos, difíceis e conturbados. Sabemos que, ao tempo, não havia ninguém incumbido de escrever as crónicas do reino. Tal só aconteceu em 19 de Março de 1434, quando o rei D. Duarte encarregou Fernão Lopes “ de poer em caronyca as estorias dos Reys que antigamente em Portugal foram”…[22]

3º Ninguém nos garante que algum relato escrito do milagre tivesse existido e se perdesse com o tempo, como aconteceu com tantos outros documentos de grande interesse.

4º Muito (ou quase tudo) do que nós sabemos sobre os primeiros tempos da nossa história vem-nos pela mesma via do “milagre”: Nobiliários, hagiógrafos e cronicões do século XIV e cronistas dos séculos XVI e XVII.

5º Se as crónicas do século XVII não merecem todo o crédito (o que é verdade), a veracidade dos Livros de Linhagens e dos Cronicões de trezentos não é maior. Nem sequer a dos “cronistas por ofício” de quinhentos é assim tão indiscutível, se considerarmos que eram remunerados pelo seu trabalho e que foram diversas vezes cumulados de honrarias por aqueles cujos feitos narraram ou cujas personalidades exaltaram. Pelo menos, em boas condições de serem verídicos, não estavam seguramente.

E, já agora, quanto ao crédito dos historiadores de Alcobaça da era de seiscentos, não podemos medi-los a todos por igual. Se Bernardo de Brito não merece grande crédito como historiador, o mesmo não acontece com António Brandão, geralmente considerado um homem cuidadoso na investigação da verdade. Ele próprio, no prólogo dos seus trabalhos, depois de dizer que “a verdade he a alma da Historia” e de atestar que, em matéria de factos históricos, se não deve admitir coisa alguma sem a conferir com os documentos, afirma ter gasto perto de dez anos “em buscar e & ler as Doaçoens, Privilegios, Escrituras, & Livros dos principaes Archivos das Sés, & Mosteiros deste Reyno, e alguns das Cidades, & Villas delle, & principalmente o Chartório da Torre do Tombo que he o Archivo Real & está no Castello de Lisboa” [23].

Aliás, como todos sabemos, Alexandre Herculano, para redigir a sua História de Portugal, serviu-se dos trabalhos de Frei António Brandão, a quem chama “um ilustre restaurador da história pátria”, e a respeito do qual afirma que foi “o homem que mais atingiu o espírito da ciência histórica, exceptuando António Caetano do Amaral e João Pedro Ribeiro”[24]. Já não diz o mesmo em relação a Bernardo de Brito, caracterizando a sua obra como “altamente ridícula.”[25].

6º António Brandão, quando se refere ao “milagre de Cárquere”, cita duas antiquíssimas “Comemorações” em louvor de D. Afonso Henriques que ele próprio teve em mão e que eu reputo da maior importância neste caso: uma, escrita em pergaminho, viu-a no Mosteiro de Lorvão; a outra, no Mosteiro de Alcobaça.

Diz textualmente o cronista: “Deste milagre temos notícia (além do dito nas nossas Chronicas, & da tradição recebida) em hua commemoração antigua do Mosteyro de Alcobaça, ordenada pelos Padres daquelle Convento em louvor do gloriofo Rey Don Afonso Henriquez…com as palavras seguintes: “Qui mox a puero in fide beatae Virginis Matris Dei, dominae nostrae susceptus, cujus oraculo et patrocinio tibiarum sanitatem recepisti”. Querem dizer: que el Rey Dom Afonso Henriquez, logo desde Menino, foy posto debaixo do amparo da Bemaventurada Virgem May de Deos Senhora Nossa, por cuja revelação e intercessão alcançou a saude das pernas”[26].

Ora, o argumento aduzido quanto à hipótese dos monges de Santa Cruz terem “forjado” o milagre para dar notoriedade ao mosteiro e atraírem mais romeiros, cai assim por terra, já que, nem Lorvão nem Alcobaça tinham alguma coisa a ver com Cárquere; e até pode perguntar-se, com alguma pertinência: Como é que em Lorvão e em Alcobaça se sabia do “milagre”, tantos anos antes de ele ter sido “inventado” pelos cronistas? Aliás, a tal “Comemoração” de Alcobaça tinha de ser muito, muito antiga, sabendo-se que o “culto” a D. Afonso I cedo começou a morrer, sendo portanto muito anterior às Crónicas do século XVII.

7º Pergunta-se: o pretenso “milagre”, a ser verdadeiro, teria acontecido por volta de 1114, tendo o Conde D. Henrique morrido dois anos antes, ou seja, em 1112? A ”Crónica Gothorum” diz que, à data da morte de seu pai, o Infante tinha dois ou três anos [27]. As datas que acabo de referir, a serem verdadeiras e indiscutíveis, punham em questão os últimos conselhos e as derradeiras recomendações do Conde ao Infante seu filho na hora de morrer, e que constam do Nobiliário de D. Pedro [28] e das “Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra” [29].

Sabendo D. Henrique que o menino era bebé, doente, enfezado e incapaz (a acreditar nas Crónicas, o “milagre” ainda não acontecera nessa altura), como lhe confiou tarefas tão nobres e tão complicadas?
Sobre esta questão, eu ouso perguntar: Quem nos garante que o príncipe tinha apenas dois ou três anos quando o Conde faleceu e que o milagre só aconteceu quando o pequeno já tinha cinco anos? Não havendo documentos coevos, todas essas datas são discutíveis.

Não sendo nenhum dos documentos contemporâneo dos factos, e sabendo-se que “quem conta um conto lhe acrescenta sempre um ponto”, quem nos diz que a cura do menino não aconteceu pouco depois de ter sido desmamado por D. Ausenda e que, à hora de o conde falecer, não seria já um pequeno adolescente capaz de entender as falas e de apreender, aceitar e guardar a mensagem do conde moribundo?

Duarte Galvão diz-nos na sua “Chronica” que, à morte do Conde, era o príncipe “já de tal idade que nas guerras e fadigas supria os carregos de seu pai.”[30] Camões, n’ Os Lusíadas, referindo-se ao Conde D. Henrique, escreve assim: “quando chegado ao fim da sua idade, o forte e famoso húngaro estremado….o s’prito deu a quem lho tinha dado, ficava o filho em tenra mocidade…” [31] E quem nos garante também que tais recomendações do ilustre pai são mesmo verdadeiras e não foram inventadas?

Eu penso que o ocorrido é uma coisa - que se foi transmitindo de geração em geração - e que os pormenores de datas, de ditos e de idades são outra coisa bem diferente, que se foi imaginando e inventando a gosto de cada um. Daí as contradições. Basta confrontar os investigadores que escreveram sobre D. Afonso I, para encontrarmos as maiores divergências, praticamente em tudo o que a ele se refere, nomeadamente a data e o lugar do nascimento, e quem foi o seu “criador” e “educador”.

Quanto à data do seu nascimento e ao local onde terá nascido, optarei por 1109 e pela cidade de Guimarães, preferidos pela maior parte dos actuais investigadores. [32] Ora, por volta de 1109, “o honrado e bem-aventurado D. Egas Moniz de Ribadouro” (assim o caracterizam os Nobiliários medievais), a mando do Conde D. Henrique, teria dominado e controlado algumas revoltas da população árabe na região de Lamego, onde o futuro aio possuía grandes bens patrimoniais. Parece que foi também a partir daí que o fidalgo se tornou o homem da confiança do Conde e da sua mulher, adquirindo na corte um papel primordial, sendo-lhe inclusivamente entregue um pouco mais tarde o príncipe, para ele o criar e educar·[33].

Terá sido nessas circunstâncias que Egas Moniz o recebeu em sua casa, deslocando-se frequentemente com ele e com a sua família para os seus “paços” ou “quintãs” do Douro, nomeadamente, Cresconhe (no actual concelho de Cinfães), Britiande (junto a Lamego) e Resende, o meu concelho, onde também tinha o seu “Paço”.

A estadia do príncipe em Resende, posta em causa por alguns estudiosos, é afirmada por Frei António Brandão, [34] por Frei Leão de S. Tomás, [35] por Rodrigo Mendes da Silva, [36] por Frei Teodoro de Melo [37] e, muito recentemente, por Freitas do Amaral e Augustina Bessa –Luís. [38]

A ser verdadeira a estadia de Afonso Henriques em Resende, no Paço de Egas Moniz, mais razoável é toda a tradição do povo que refere a difícil e íngreme subida de Egas Moniz de Resende a Cárquere, depois de a Virgem lhe ter aparecido em sonhos.

9º Vários cronistas do século XVII estabelecem relação entre a fundação do Mosteiro em Cárquere e o tão discutido “milagre.

Gonçalves da Costa, que foi um ilustre membro desta Academia e escreveu a “História do Bispado e Cidade de Lamego”, em 6 volumes, diz que a primeira comunidade religiosa se deve ter instalado em Cárquere ainda durante a monarquia suevo/visigótica e que, depois da Reconquista destas terras aos Mouros, se deve ter reorganizado sob a direcção de um prior à maneira dos Monges de Santa Cruz de Coimbra, começando então a designar-se por Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, por viverem debaixo da sua Regra. [39]

Esta afirmação parece-me bastante provável, já que, seguindo-a, conseguimos encaixar, como num “puzzle” perfeito, diversas realidades de Cárquere que passo a expor sucintamente:

a) Antes de mais, a minúscula e preciosíssima imagem da Senhora de Cárquere, em marfim, que já atrás referenciei, e a história popular que fala do seu casual achamento na altura da Reconquista. Havendo em Cárquere um centro tão intenso de espiritualidade, é compreensível que tal imagem da Virgem ali fosse venerada com especial devoção e a tivessem escondido algures, na confusão das invasões sarracenas.
b) Da nave da igreja de Cárquere faz parte uma velha parede de granito que separa o templo do antigo Conventinho, tipicamente românica como a torre, enquanto tudo o mais é do século XVI, de características claramente manuelinas, o que não é difícil de compreender: quatrocentos anos depois, bem podia a nave do templo apresentar sinais de degradação ou de ruína.
Bem ao contrário, toda a capela-mor é gótica dos séculos XIII/XIV, o que já não é tão fácil de explicar: não é plausível que, sendo a igreja toda uma construção do século XII, cem anos depois já fosse preciso substituir ou remodelar toda a capela-mor. A explicação razoável parece estar mesmo na existência de um pequeno templo suevo-visigótico dos séc. VI/VII que, setecentos anos depois, fosse substituído pela capela-mor que ali se vê.

E com esta explicação se coaduna perfeitamente a preciosa imagem da Senhora com o Menino. Além disso, os pilares da capela-mor me parecem de estrutura e gosto muito mais antigos que o próprio gótico.

c)
Quando, em 1994, se desmontou o retábulo barroco do altar-mor para limpeza e recuperação da talha com subsídio da Secretaria de Estado da Cultura através do IPAR, ficou à vista uma enorme pedra em forma de mesa, rude, chanfrada nos dois ângulos frontais, com uma espécie de cofre cavado na parte superior, a meio, e coberto com uma pequeno naco de madeira. O cofre estava vazio, mas aquela grande pedra bem pode ter sido a mesa do altar da igreja primitiva (porque não do templo suevo-visigótico?), altura em que não se fundava nenhum lugar de culto sem a presença das relíquias dos mártires. E, se assim for, esse pequeno templo visigótico bem pode ter sido aquele que, embora muito degradado e talvez abandonado, existia em Cárquere quando D. Egas ali trouxe o Infante. E não nos será permitido imaginar até, que aquela mesa tosca de granito agora descoberta possa ter sido também o altar referido nas crónicas, onde o menino foi colocado como Nossa Senhora mandou?
Estou quase a concluir. Não o farei, porém, sem antes fazer uma referência a uma estranha hipótese que se divulgou rapidamente pelo país, sendo hoje conhecida e usada por muito boa gente, para contradizer o milagre. Refiro-me a um artigo escrito por Santana Dionísio n “O Primeiro de Janeiro” de 12 de Janeiro de 1969, que passo a transcrever nos seus três últimos parágrafos, que são os que nos interessam:

“À distância de quase nove séculos desse prodigioso evento, que poderemos nós, homens ressequidos deste século duro, pensar ou dizer acerca do mesmo?

É caso para profunda e tácita meditação.

A única palavra que talvez nos seja lícito pronunciar é a de que a estranha transmutação da criança enfermiça e sem porvir, na predestinada criança rosada e fortíssima que iria ser fraterno companheiro de correrias e diabruras do futuro Espadeiro (fraterno e quem sabe se irmão sanguíneo?) é um intrigante mistério que bem poderia ser objecto de discreto debate num possível Symposium ecuménico dos mais argutos detectives do mundo, tendo talvez como tema esta simples legenda: “A estranha incógnita de um presumível infanticídio, bem intencionado e perfeito
”. [40]
No texto, como é fácil de ver, pretende levantar-se um véu de muitos séculos, para, a medo (e para negar o “milagre”), sugerir que o príncipe deficiente foi eliminado num abrir e fechar de olhos e habilmente substituído por um qualquer saudável e robusto filho de Egas Moniz, sendo o “milagre de Cárquere”, neste caso, apenas uma invenção artificiosa para encobrir tal substituição.
Depois de Santana Dionísio, outros lhe seguiram o encalço. Omitindo propositadamente o título dum livro publicado em 2007 e o nome do seu autor (por me parecer mal escrito e demasiado indecoroso, a raiar até as fronteiras da obscenidade), anotarei apenas o que Augustina Bessa-Luís escreveu para “Fama e Segredo na História de Portugal[41].

Cito apenas três passagens da “2ª ópera” da referida brochura:

“A criança raquítica, embora bela e prendada de muitas graças, deu lugar a um guerreiro como não houve outro na nossa História. Dá para pensar que Egas Moniz o fez substituir por um dos seus próprios filhos ou pelo filho de algum rico-homem de pendão e caldeira, como se dizia.”

“Uma nota arrepiante fica no rodapé da História. Que foi feito da criança aleijada que Egas Moniz levou nos braços, arrebatando-a à sua ama D. Ausenda?”

A versão que agora corre, e a mais vulgarizada, fala apenas de uma habilidosa troca de crianças, ficando D. Egas com o enfermiço do Conde, e o Conde com um possante rebento de D. Egas.
A minha opinião é a seguinte: Mesmo que ponhamos em causa todas as crónicas e relatos do milagre (e é compreensível, legítimo e razoável que o façamos), muito mais podemos e devemos pôr em causa esta estranha hipótese de Sant’Ana Dionísio e de todos os que a aceitaram e a usam depois dele, pela simples razão de que as crónicas dos séculos XVI e XVII têm atrás de si e a seu favor uma tradição oral passada de pais a filhos através de incontáveis gerações, podendo os cronistas ter-se limitado a passá-la a escrito na hora em que dela tiveram conhecimento (admitamos que, com algum exagero de pormenores), enquanto a recente hipótese, que vem apenas de 1969 (segundo eu sei), nada tem atrás de si, parecendo-me por isso mesmo inteiramente falaciosa e gratuita, para além de vir contrariar a proverbial honestidade de Egas Moniz nunca posta em causa por ninguém. Não me parece razoável e credível que homens tão honestos e honrados como foram Egas Moniz e o Conde Henrique, trocassem os filhos um com o outro, e muito menos se prestassem a matar uma inocente criança que acabava de nascer, fosse pelo que fosse.
Para além de que, não sendo fácil tal crime ou falcatrua passarem despercebidos, podem imaginar-se as reivindicações do poder que não haveria por parte de outros filhos de D. Henrique, e sobretudo por parte de D. Teresa, que obviamente sabia de tudo. Como podemos acreditar que a Condessa se calasse na ocasião do recontro de S. Mamede, sabendo que o porta-bandeira da revolta não era o filho verdadeiro de D. Henrique, mas tão só um dos filhos de D. Egas? E também não é difícil imaginar como seria aproveitada uma tal fraude por bobos e jograis para tema de cantigas e romances, que haveriam de correr de terra em terra e de chegar até nós como chegaram os relatos dos “milagres”.

Nos tempos que correm, não sei se por snobismo se por desejo de protagonismos ou lucros fáceis, usa-se levantar suspeitas de tudo e em relação a quase tudo, parecendo pretender-se ás vezes “descobrir a pólvora”, contradizendo tudo o que se disse ou ensinou ao longo de séculos e que foi considerado como verdade por muitas e sucessivas gerações. Basta pensarmos de relance nos temas da morte do papa João Paulo I, da virgindade e da ressurreição de Jesus, e em todos os best-sellers relacionados com tais questões, procurados e devorados com alguma sofreguidão pela nossa sociedade, na sua avidez insaciável de novidades, escândalos e sensacionalismos.

Não digo que se não devam pôr outras hipóteses, por mais afastadas ou contraditórias que sejam do que sempre nos foi dito. A ciência começa por aí. Tais hipóteses, entretanto, não passam disso mesmo, enquanto se não conseguirem provar, com exames sérios, documentos credíveis e argumentos insofismáveis.

Uma tradição, mesmo que não suficientemente provada, não pode ser destruída de um dia para o outro por uma mera hipótese baseada em suspeições e desprovida de qualquer prova razoável. Inventar suspeições e formular hipóteses, é o que há de mais fácil. E, pelos vistos, em nossos tempos, até é rentável. Altamente rentável, em fama e em proveito.

Vou concluir:

No nosso caso, por tudo o que hoje sabemos, ninguém pode afirmar o milagre, mas também ninguém o pode negar.

Como vimos, os argumentos a favor ainda parecem ser os mais credíveis. Só que a história faz-se com documentos autênticos e indiscutíveis…e esses não existem, sobretudo por não serem contemporâneos dos factos que estão em causa. Não existem neste caso, mas também em muitos outros relacionados com os primeiros tempos da nossa existência como povo livre e como nação independente, e que nós, afinal, até aceitamos sem grande reserva.

Efectivamente, nós não podemos dar como indiscutivelmente falsas todas as informações que chegaram até nós por via dos nobiliários, dos cronicões ou dos cronistas. Algumas podem ser (e são por certo) fruto da invenção de feitos maravilhosos muito do gosto dos escritores de todos os tempos e muito mais dos cronistas de seiscentos. Mas também nada se opõe a que sejam fruto de uma tradição segura e continuada (ainda que enriquecida com pormenores pouco credíveis), de que se perdeu a fonte documental.

Entre parêntesis, e apenas para ilustrar o que agora afirmei, refiro o famoso feito de Martim Moniz na tomada de Lisboa aos Mouros, mencionado no Nobiliário de D. Pedro [42] e negado em absoluto por Alexandre Herculano,·43] por não haver documentos contemporâneos do mesmo. Ora, Alfredo Pimenta, em “Fontes Medievais da História de Portugal”, [44] fala-nos de uma escritura em pergaminho encontrada por ele nos Arquivos da Torre do Tombo, com a data de 1258, onde se dá como referência de uma propriedade a “porta da cidade de Lisboa que dizem de Martin Moniz”, o que nos mostra que, 111 anos depois da conquista de Lisboa, já era tradicional o povo chamar-lhe assim. Consequentemente, conclui o referido investigador, o autor do Nobiliário não inventou o feito ou a façanha, mas apenas captou e registou uma tradição que já tinha mais de duzentos anos.
A minha opinião sobre o ”milagre de Cárquere” é a seguinte: Pode não ter havido um milagre assim tão claro, tão aparatoso, tão radical e tão rápido; pode e deve haver ampliação e exagero, tanto no que aconteceu como no modo como as coisas ocorreram, mas alguma coisa se passou, e muito séria, e com isso se relaciona Cárquere, a sua Igreja e o seu Mosteiro. E o povo, indiferente a provas e documentos, sempre contará a história do milagre que vem de longe, de muito longe, e vai permanecer pelos séculos fora. Uma coisa é certa: se reduzirmos os nossos conhecimentos e os nossos informes a factos cientificamente provados com suportes documentais indiscutíveis e exames laboratoriais evidentes, a nossa vida pode vir a tornar-se demasiado glacial e insípida, para não dizer prosaica, monótona, e até desengraçada. Quando o maravilhoso (mesmo que o seja) já não tiver lugar em nossas vidas e na vida das nossas crianças, deixaremos todos de sonhar, de recordar e de viver. Se não tivermos a certeza do que afirmamos por não poder provar-se documentalmente (e excluindo naturalmente publicações de carácter científico) julgo que devemos continuar a dizer e a repetir: “Conta-se que, um certo dia, já lá vão muitos anos…”
Aliás, foi assim que procedeu Freitas do Amaral no seu livro “D. Afonso Henriques”, que, avisadamente, se limitou a transcrever sobre o assunto o texto de Duarte Galvão, sem negar nem afirmar o que quer que fosse. [45]

Não me é proibido, além disso, pensar que os relatos do “milagre”, escritos nos séculos XVI e XVII, possam ser apenas o registo escrito de uma tradição que vinha dos primórdios e que nunca se perdeu. E a tradição, não sendo absolutamente válida como fonte histórica, é, mesmo assim, um canal de transmissão de factos e de verdades que não podem ser simplesmente ignorados ou desprezados por quem faz investigação.

Aliás, é bem interessante a alusão de António José Saraiva, quando, no seu curioso estudo sobre a IV Crónica Breve de Santa Cruz, defende que existiu, sem qualquer dúvida, uma tradição épica sobre Afonso Henriques, quiçá um poema jogralesco, que pode remontar ao último quartel do século XII, cantado talvez pelos jograis nas praças das vilas e nos festins dos castelos, baseada em testemunhos orais contemporâneos ou um pouco posteriores aos acontecimentos que faziam o seu tema. E o mesmo historiador afirma ainda que os cronistas se habituaram a citar os relatos dos jograis, apontando-os algumas vezes como fontes históricas. E a verdade é que, na “Crónica Geral de Espanha” de Afonso X, escrita no século XIII, se dá um largo acolhimento a histórias tradicionais, entre elas a dos “Sete Infantes de Lara”, ocorridos em 974. [46]

Os historiadores que negam os milagres narrados nas “Crónicas” (o de Cárquere e o de Ourique) e lhes chamam invenções devotas, explicam tais invenções dizendo que foram escritas numa época em que a moral do povo português se encontrava de rastos (época do domínio filipino) e era necessário erguer bem alta a bandeira dum povo eleito e predestinado pela Providência Divina, desde o seu início, para cumprir um destino de glória, na independência, na liberdade e no êxito. Mas afinal, mesmo que assim tenha sido, o nosso imortal Herculano, dois séculos mais tarde, no seu famoso romance histórico “O Bobo”, também explica a nossa vitória em S. Mamede como um êxito messiânico e providencial. Diz o romancista: “No progresso da civilização humana, nós tínhamos uma missão a cumprir. Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo, cheio de actividade e vigor…um povo de homens de imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envolto em temporal, e cujos destinos era conquistar para o cristianismo e para a civilização três partes do mundo, devendo ter em recompensa unicamente a glória.”…”Que sejam agora as memórias da pátria, que tivemos, o Anjo de Deus que nos reboque à energia social e aos santos afectos da nacionalidade”. …”No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio”. “Exercitem-no os que podem e sabem, porque não o fazer é um crime”. [47]
Assim sendo, e por todas as razões que apontei, Resende e Cárquere têm muito a ver com Portugal, o seu passado, o seu presente e o seu futuro. Com milagre ou com uma simples graça de recobro na saúde, foi em Cárquere que, na pessoa do seu primeiro líder e do seu mais forte cabouqueiro, Portugal começou a dar os seus “primeiros passos” e se desenvencilhou duma paralisia congénita que nunca o deixaria ser livre e construir o seu futuro.
Permitam-me que eu conclua estas desajeitadas palavras, citando o tomarista Teodoro de Melo, no seu gongórico manuscrito de 1733:

“Podendose gloriar Rezende de ser nas nossas Espanhas o venturoso principio, e manancial fonte, e inexhausta origem de toda a sua ou quase toda a mais qualificada e melhor Nobreza, e mais avultada; e sendo grande glória esta para uma terra tão pequena, não é menos gloria para a mesma, o haverse nella creado, e milagrosamente feito apto, não o sendo por nascimento, e saindo della para o Reyno, o primeiro, e o mais valleroso Rey dos Portuguezes”.

“E jactese muito embora Guimaraens de lhe dar o nascimento, mais que em júbilos envolto em lágrimas, pello seu nativo defeito que lhe concedemos com racional inveja das mais terras não pequena, que em Rezende, sem jactância, foi o jubilo perfeito, as lágrimas gostoso agradecimento do remédio, e toda a esperança da bárbara expulsão que nelle se fez complecta na mesma terra; da qual saindo vigoroso, e prodigiosamente sem o impedimento com que nascera, o mayor prodígio em armas daquelles e de outros muitos tempos, a todos, e a todo o mundo por sy, e por seus descendentes, encheu de triunfos e victórias, de Coroas, Ceptros e Diademas”. [48]
Termino, exprimindo um desejo sincero e formulando um voto fervoroso: Gostaria que alguma vez esta Ilustríssima Academia se deslocasse a Cárquere, a Santa Maria de Cárquere, para apreciar “in lo-co”, ao menos uma vez na vida, o que acaba de ser dito e que eu logro felizmente todos os dias, sempre com a mesma surpresa e igual encantamento.
Muito obrigado
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Nota: Omitimos listagem da longa bibliografia.
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