domingo, 22 de março de 2009

A crise no L’Osservatore Romano*

Ficou célebre a fábula das abelhas, de B. Mandeville, em 1714, uma obra inteligente e cínica. Havia uma colmeia semelhante à sociedade humana, concretamente nos seus vícios. Cada abelha procurava o seu interesse. Não faltavam as preguiçosas, as gananciosas, as exploradoras. A fraude e a corrupção também abundavam. A própria justiça era corrupta. Evidentemente, a abelha-mestra não fugia à regra. E, paradoxalmente, a colmeia era próspera.
Um dia, porém, operou-se uma viragem, de tal modo que cada abelha, daí para diante, se deixou guiar apenas pela honradez e virtude. Então, eliminados os vícios e excessos, já não eram necessários os médicos, as farmácias e os hospitais. Terminadas as contendas, desapareceram os polícias, os advogados, os juízes. Uma vez que todos se guiavam pelo princípio da moderação, acabou o luxo, a arte, o comércio e tudo aquilo que a eles está ligado. E o colapso foi geral.
L. González-Carvajal comenta, concluindo: “Fraude, luxo e orgulho devem viver, se quisermos fruir dos seus doces benefícios”. A conclusão já está no próprio título da obra: A fábula das abelhas ou os vícios privados fazem a prosperidade pública.
O paradoxo de que o bem comum resultaria da convergência dos egoísmos foi expresso também pelo conceito de “astúcia da razão”, de Hegel, e pela teoria da “mão invisível”, de Adam Smith. Os homens, egoístas, procurando o seu interesse individual, acabam, mesmo sem a sua vontade e até contra ela, por promover o progresso e o bem-estar geral; os vícios dos indivíduos contribuem para a felicidade pública e a prosperidade das nações e da Humanidade.
A razão moderna instituiu a ideia de progresso ilimitado como artigo de fé. Essa crença, que é a secularização da salvação escatológica cristã, resistia à própria prova do egoísmo e mal em geral.
Apesar de tudo o que de bom devemos à modernidade, não somos hoje tão optimistas. A razão moderna não trouxe a libertação e a salvação prometidas e colocou até nas mãos da Humanidade a possibilidade da sua autodestruição – pense-se no armamento nuclear e na questão ecológica.
Face à presente crise devastadora, percebemos que não basta corrigir o sistema. Afinal, a crise financeira é, como diz o famoso sociólogo belga François Houtart, fundador do Centro Tricontinental da Universidade Católica de Lovaina, manifestação de uma crise mais vasta: alimentar, energética, climática, humanitária, ecológica...
Para ele, a sociedade do futuro tem de construir-se à volta de quatro eixos. O primeiro obriga a uma nova relação de respeito e não de exploração com a natureza. “Na prática, significa declarar a água e as sementes património universal e não permitir a sua privatização”. O segundo eixo é privilegiar o valor de uso e não o valor de troca, o que significa que os produtos e os serviços têm de ser desenvolvidos em função das necessidades e não, em primeiro lugar, do lucro. Para superar esta “situação absurda”: nunca houve tanta riqueza e tantos pobres. O terceiro eixo é a “democratização da sociedade”, não só no campo político, mas em todas as relações sociais: na economia, saúde, educação, desporto, religião, entre homens e mulheres. O quarto eixo é a multiculturalidade, no sentido da “possibilidade de que todos os saberes, filosofias e religiões contribuam para a construção social colectiva”.
Para uma crise global a resposta tem de ser global. Inesperadamente, desta vez, a proposta simples e revolucionária, que lembra o famoso Plano Marshall, foi lançada no L’Osservatore Romano, diário do Vaticano. Primeiro, no dia 30 de Janeiro, por Ettore Gotti Tedeschi, banqueiro e professor de economia na Universidade Católica de Milão, e, depois, em 19 de Fevereiro, pelo primeiro-ministro britânico, Gordon Brown. O projecto que vai ser posto à consideração da cimeira do G20 consiste num investimento gigantesco a favor dos países pobres, com o fim de estes se tornarem protagonistas de um boom económico para seu benefício e, com o tempo, para ulterior bem-estar e riqueza de todos.
Uma versão outra da fábula das abelhas? Escreveu Tedeschi: “Isto não é moral, é economia”.
*Anselmo Borges (crónica do Diário de Notícias, de 21-03-2009)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Projecto EPIS na ES/3.º D. Egas Moniz*

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS DE SINALIZAÇÃO DE FACTORES DE RISCO


Em resposta ao apelo do Presidente da República para um compromisso cívico para a inclusão social, lançado no discurso de 25 de Abril de 2006, um grupo de empresários constituiu em Setembro desse ano a associação EPIS (Empresários para a Inclusão Social) com o objectivo de contribuir, em parceria com o Ministério da Educação e autarquias, para o sucesso educativo, privilegiando os alunos do 3.º ciclo. Em 15 de Outubro do mês passado, foram anunciados os primeiros dados relativos à escola D. Egas Moniz, cujo projecto foi objecto de um protocolo de parceria com a Câmara Municipal de Resende, assinado em Novembro de 2007.

O que é a EPIS

É uma associação com o estatuto de utilidade pública, que conta entre os seus associados e entidades parceiras com mais de uma centena de grandes empresas, as quais correspondem a cerca de 35% do PIB e de 80% do principal Índice da Bolsa Portuguesa (PSI-20). Na sua génese está um apelo do Presidente da República para responder aos problemas da exclusão social. Como concretização da sua missão prioritária, os dez empresários fundadores estabeleceram a Educação como objecto central da sua actividade e, especificamente, o combate ao insucesso e abandono escolar, na convicção que este é o ponto de partida para o desenvolvimento individual dos jovens e consequente inclusão social.

Para a definição de metodologias e abordagens de intervenção, supervisão, formação de técnicos, acompanhamento da Direcção e Equipa de Gestão da EPIS e monitorização dos resultados, foi criado um Conselho Científico, constituído por doze elementos, a maioria dos quais são professores universitários.

Presentemente, estão a ser implementados projectos-piloto em onze concelhos pioneiros. Os mesmos deverão ter uma duração de 3 anos para permitir o trabalho de intervenção com jovens de risco do 7.º ano até ao final do 3.º ciclo. Estes projectos-piloto serão integralmente apoiados pela EPIS em termos metodológicos, mas financiados pela associação apenas em 25%, sendo o restante suportado pelas autarquias e/ou comunidades empresariais locais.

O que faz e como faz

Os dois primeiros projectos-piloto tiveram início no último trimestre de 2007 (Paredes e Odivelas), tendo, nos dois primeiros meses de 2008, sido lançados mais 9 projectos (Matosinhos, Resende, Lousada, Vila Franca de Xira, Aljezur, Tavira, Amadora, Setúbal e Santarém), sendo que estes três últimos são objecto de um acordo específico com o Ministério da Educação. A primeira fase, de sinalização e de avaliação de factores de risco, que envolveu 88 escolas e cerca de 20.000 alunos dos 7.º e 8.º anos, decorreu até às férias da Páscoa. No terceiro período, até final do ano lectivo 2007/08, os projectos entraram na fase de capacitação dos alunos do 7.º ano considerados em risco. Esta intervenção inclui um conjunto de metodologias de tipo educacional direccionadas para quatro grupos (aluno, família, escola e território), a qual se desenvolve com base em planos individuais de acompanhamento em proximidade e continuidade por mediadores EPIS, constituídos por técnicos especializados e experientes, com formação e treino no âmbito da metodologia do projecto. Para facilitar a intervenção e mais facilmente alcançar os resultados desejados, foi estabelecido um conjunto de critérios e regras: um baixo rácio de alunos (à volta de 70) por técnico, uma frequência de contacto elevada, estabilidade da relação pessoal técnico-aluno e apoio potencial ao longo de todo o 3.º ciclo. São excluídos do acompanhamento directo as situações em que se requeira intervenção clínica, jurídica ou ao nível da segurança social, privilegiando-se nestes casos a colaboração com as entidades especializadas já a actuar a nível local ou nacional.

Como metodologia de capacitação para o sucesso escolar e para um percurso de 12 anos de escolaridade, o projecto integra também um plano de formação em empreendedorismo (“Economia para o Sucesso”) para alunos e famílias, em parceria com a Júnior Achievement, já devidamente testado.

Para além desta vertente, a EPIS tem em desenvolvimento um segundo grande projecto, a nível da escola enquanto organização, que tem por objectivo aportar novas competências de gestão empresarial às lideranças de escola e aos docentes, tendo para isso subscrito uma parceria com o Ministério da Educação e com a Mckinsey &Company, com vista à codificação das boas práticas nas escolas portuguesas e estrangeiras para futura aplicação à rede de escolas públicas. Nesta sequência, já lançou um inquérito aprofundado a todas as escolas com 3.º ciclo, cujos dados ajudarão a elaborar, implementar e dinamizar um “manual de boas práticas de gestão nas escolas”.

Alguns resultados da triagem de alunos para o programa de capacitação em Resende

Segundo dados fornecidos pelo Gabinete de Estatística e Planeamento de Educação (GEPE) do Ministério da Educação, a percentagem de retenção e desistência no 3.º ciclo e, designadamente no 7.º ano, no conjunto dos dois estabelecimentos de ensino de Resende é deveras elevada. Assim, no ano lectivo de 2005/06, as percentagens de retenção e desistência no 7.º ano e no conjunto do 3.º ciclo foram, respectivamente, 37,2% e 26,4%, tendo descido, em 2006/07, para 20,8% e 18,8%. Perante estes dados, que ultrapassam a média nacional, a Câmara Municipal de Resende, na pessoa do seu presidente, Eng. António Borges, não quis perder a oportunidade de aderir ao projecto EPIS e à sua metodologia de intervenção, na perspectiva de alteração deste estado de coisas na escola secundária/3.º ciclo D. Egas Moniz.

Os dados de sinalização de alunos em risco, com vista à implementação de um programa estruturado de capacitação, foram apresentados no Auditório do Museu Municipal de Resende, no passado dia 13 de Outubro, pela equipa nacional da EPIS (Eng. Diogo Simões Pereira, Eng.ª Ivone Lima Miranda e Dra. Paula Cabral). Nesta sessão, estiveram presentes o Eng. António Borges, presidente da Câmara Municipal, Silvano Moura, vice-presidente da Câmara e representante da mesma no programa EPIS, o Dr. José Dias Gabriel, presidente do Conselho Executivo da escola D. Egas Moniz, os Drs. Jorge Xavier e Patrícia Pinto, mediadores do projecto, e a comunidade educativa da escola em apreço.

O programa teve início em Janeiro de 2008 com o pedido de autorização aos pais dos alunos dos 7.º e 8.º anos para a análise dos resultados escolares, passagem de questionários e instrumentos de avaliação de factores de risco. Cumpre assinalar que as respostas positivas a este pedido (87,5%) ultrapassaram a média nacional das onze escolas abrangidas, a qual foi de 80,49%. Relativamente a resultados escolares, 30,5% dos alunos apresenta resultados positivos em todas as disciplinas, em contraponto com 13,51% com notas negativas em mais de 50% das disciplinas. A nível nacional, estas percentagens são, respectivamente, 33,81% e 14,95%.

À pergunta “Até que ano de escolaridade gostarias de estudar?”, as respostas demonstram pouca ambição, pois 27,03% fica-se pelo 9.º ano e 49,03% pelo 12.º ano. Só 22,39% tem como perspectiva tirar um curso superior, enquanto a percentagem a nível nacional é de 52,32%. As respostas dos alunos relativamente à percepção desta questão por parte dos pais (“Até que ano de escolaridade achas que os teus pais gostariam que tu estudasses?” ) não acompanham, infelizmente, os dados nacionais. Só 41,04% acha que os respectivos pais gostariam que tirassem um curso superior, 43,03% responde que já ficariam satisfeitos com o 12.º ano e há mesmo 8,37% que se fica pelo 9.º ano. Estes resultados estão longe dos dados nacionais, pois 64,28% dos alunos pensa que os pais ambicionam para os filhos um curso superior e apenas 16,86% e 1,75% se resigna, respectivamente, ao 12.º ano e 9.º ano.

Relativamente às inter-relações com a família (ajuda, conversa, decisões conjuntas…), os resultados dos alunos de Resende aproximam-se, de uma maneira geral, dos dados nacionais.

Boa imagem da escola

No que respeita à apreciação da escola, há um conjunto de respostas lisonjeiras para a mesma. Assim, à questão “Consideras a escola degradada?”, 70,66% responde negativamente; 81,85% acha que o conjunto das actividades extra-escolares é adequado; 52,12% refere que a escola tem suficiência de recursos; 89,1% pensa que os professores se interessam pelos percursos escolares dos alunos; e 84,94% tem a percepção que os professores estão disponíveis. Por sua vez, para 55,6% a escola é exigente em termos de rendimento escolar e para 70,27% é exigente em termos de disciplina e ordem. E por último, 98,46% considera que os conteúdos aprendidos são importantes.

Há dois resultados relativamente a duas áreas (violência na escola e abuso de substâncias), que têm de ser devidamente interpretados. Assim, à pergunta “Há violência na escola?” e “Há abuso de substâncias?”, as respostas afirmativas são, respectivamente, 67,57% e 81,47%. É bom referir que estes resultados reflectem a percepção dos alunos e não a realidade do que se passa. A ocorrência de algum acontecimento significativo no âmbito destas áreas, dentro ou mesmo fora do contexto escolar, e a sua consequente interiorização como objecto de preocupação podem ser factores explicativos para estas percentagens elevadas.

Os resultados a nível de Resende puderam ser comparados com os dados nacionais e de Odivelas, constatando-se, em muitos itens, percentagens próximas às deste concelho.

Conhecer para intervir

Os dados recolhidos relativamente aos alunos, famílias, escola e território permitiram elaborar um plano individual de capacitação para os alunos em risco e respectivas famílias. O programa de intervenção junto do aluno envolve técnicas individuais (entrevista motivacional, autocontrolo…) e técnicas ministradas em grupo (métodos de estudo, treino de competências sociais, gestão da crítica…). Por sua vez, as estratégias para intervir na família podem implicar um trabalho individual com uma família, seminários, acções para professores com o objectivo de reforçar o papel dos pais junto da escola ou trabalho com grupos de pais em risco. Para pais e famílias está prevista também formação em empreendedorismo. O plano envolve ainda várias acções junto da escola/território, como a avaliação/acompanhamento dos casos com os directores de turma, acções de formação (sobre mediação de conflitos e gestão comportamental do aluno em sala de aula. Por ex.) e diagnóstico da rede social.

O plano de intervenção, iniciado no último período do ano passado com os alunos do 7.º ano, está a ter continuidade no presente ano lectivo. Por sua, está previsto para breve o começo do processo de selecção dos alunos que iniciaram recentemente o 7.º ano, criando-se, assim, condições para alargar o projecto EPIS a todo o percurso escolar do 3.º ciclo.


Nota: Agradeço à Dra. Ana Lino, da equipa nacional EPIS (http://www.epis.pt), a disponibilidade manifestada para responder aos pedidos de informação e esclarecimento com vista à elaboração deste apontamento.

*Apontamento de minha autoria, escrito para o Jornal de Resende e publicado em Novembro de 2008

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