quinta-feira, 11 de junho de 2009

Homenagem ao Sr.Miranda, um carteiro de excepção*

De seu nome completo, Luís Soares Borges de Miranda, conhecido por Sr. Miranda, nasceu em 10 de Janeiro de 1925, em Vilar de Barrô. De família modesta, teve mais quatro irmãos, tendo tirado a antiga quarta classe, o que não era muito comum na época. Ainda trabalhou em tarefas relacionadas com a verificação de marcos do rio Douro antes de iniciar, aos dezoito anos, a carreira de carteiro que exerceu ao longo de quarenta anos.

Começou pela distribuição na freguesia de Barrô. Após a Sra. Leopoldina chegar de Barqueiros com a mala da correspondência, transportada até lá pelo comboio correio, e posterior abertura em casa do Sr. Francisco da Fonseca Sebes, no Rossio/Vilar, começava a caminhada do jovem carteiro pelas aldeias da freguesia. Foi uma espécie de estágio, pois só aqui esteve dois anos, tendo sido depois transferido para Resende, onde permaneceu um ano.

Aos 21 anos, entrou para a estação dos correios de S. Martinho de Mouros, onde permaneceu praticamente até se reformar, em 1985, tendo granjeado por aquelas bandas grande simpatia. As suas virtuosidades como carteiro permanecem ainda bem vivas. Depois de comer o almoço, que trazia numa marmita, em casa do “Ar Limpo”, começava o giro para entrega do correio, que entretanto o “Chico das malas” tinha trazido de Porto de Rei. O percurso era longo: Cavalhão, Peneda, Testamento, Santa Eulália, Silva, Póvoa, Cardoso, Moita, Vale de Paus, Carvalhos, Quintãs, Vinha Velha, Eira Velha, Formigal, Lugar, Cantim de Baixo e Moinhos. Dia após dia, pelas veredas lamacentas de Inverno ou pelos caminhos poeirentos de Verão, sempre a pé, devidamente fardado, era uma rotina que se traduziu em muitos milhares de quilómetros. A distribuição era feita porta a porta, com entrega personalizada. Só excepcionalmente, quando ocorriam atrasos ou em dias mais curtos, puxava da corneta e gritava “correio”, esperando que aparecesse alguém que seria o portador da correspondência para a respectiva povoação.

Desta herança ficou um rasto de grande humanidade. A sua simpatia era inexcedível. Como conversador nato, estava sempre disponível para aceitar um copo, condimentado por um bocado de chouriço ou salpicão, como pretexto e ritual para discorrer sobre as últimas notícias do mundo, do país e da vida local. Nunca tinha pressa. Além de distribuir o correio, vendia selos e postais, nunca dizendo que não a quem lhe pedia para ler uma carta ou postal. Encarregava-se de aviar receitas médicas e embalagens de medicamentos para as pequenas maleitas na Farmácia de S. Martinho de Mouros, facilitando a vida de quem precisava. À pergunta: “Sr. Miranda, há correio?”, respondia sempre que não havia correspondência: “Vem amanhã”.

Era também um homem determinado. Ainda hoje, é lendária a forma como evitou a morte de mais pessoas em Santa Eulália numa grave escaramuça, ocorrida numa tarde fatídica nos finais dos anos sessenta, de que resultou um morto. Com grande sangue frio, correu para o homicida, tendo-o imobilizado e arrancado os botões das calças para o impedir de fugir, o que permitiu que fosse preso passado pouco tempo pela GNR. Embora o mesmo tivesse sido condenado a doze anos de prisão, viria a manifestar compreensão e até apreço pelo gesto do Sr. Miranda, pois, durante todos os anos em que esteve na cadeia, fez questão de lhe oferecer um par de botas feitas por si. Este acontecimento teve grande repercussão na época, tendo merecido a atenção dos CTT, que o homenagearam através da atribuição de um louvor escrito e de uma medalha da empresa.

A simpatia e dedicação deste homem singular e profissional de excelência não tinham preço. Por alturas de S. Martinho, num gesto de retribuição, as pessoas das Quintãs, Eira Velha e Formigal faziam questão de lhe oferecer um saco ou dois de castanhas. Durante vários anos, foi o seu filho Luís Miranda, actual co-proprietário do café Sangens de Resende, quem as transportou até Barrô.

Em 1979, foi tempo de deixar o giro de distribuição e dar lugar aos mais novos, para trabalhar em tarefas de balcão na estação dos CTT de S. Martinho de Mouros. Pelo Verão, ainda foi fazendo alguns giros em regime de substituição em freguesias do concelho de Resende e de outros concelhos, até à reforma que ocorreu em 1985.

Até à sua morte que aconteceu em Setembro de 2004, viveu tranquilamente os últimos anos na sua aldeia natal de Barrô, tendo-se dedicado ao cultivo das suas pequenas propriedades. Os últimos dias de sofrimento no hospital de Lamego foram amenizados pelas muitas visitas de amigos que foi fazendo ao longo da sua exemplar vida carteiro.


*Texto de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende em Dezembro de 2008.

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