quinta-feira, 5 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM FREIGIL: Chamo-me Maria Alice Teixeira de Sousa e nasci em Freixo de Cima, Amarante, há 82 anos*

De Amarante para Resende
Vim aqui parar, porque o meu pai veio trabalhar como pedreiro e lavrista para as obras de construção da central hidroeléctrica, no rio Cabrum. Começou por vir sozinho, mas passado algum tempo mandou vir a mulher e os dois filhos. Vim com dois anos. Três dos meus irmãos nasceram em Freigil.
Antigamente, as crianças começavam a trabalhar muito cedo. Desde pequena comecei a cuidar dos meus irmãos, a fazer recados e tudo o que a minha mãe me mandava. O meu pai saía para ganhar o dia. Só vinha à noite e, muitas vezes, saía na segunda-feira e só voltava na sexta ou sábado, dormindo em palheiros. A minha mãe tinha de ir ajudar os outros nos campos, sendo a paga em comida ou por troca daquilo que a terra dava. Por isso, só cheguei a andar alguns meses na escola e pouco aprendi. Sei escrever o nome e pouco mais. Ainda consigo ler qualquer coisa, desde que seja devagarinho e as letras sejam grandes.
A partir dos 10 anos, fui muitas vezes apanhar resina para os montes, contratada por empreiteiros de Resende e de Leiria. Ainda me recordo de uns homens cuja tarefa era fazer um corte nos pinheiros com uma grande lâmina, pondo de seguida um pucarinho por baixo. O meu trabalho, tal como a de outras raparigas e mulheres, era apanhar a resina para um balde. Depois de cheio, despejava-o para grandes barris em forma de pipo. Estes eram depois transportados em carros de bois para seguirem em barcos ou em comboios.
Também ia trabalhar nos campos. Muitas vezes, a recompensa era só comer ou a troco de pão, batatas e outros produtos da terra. Além disso, acarretei muitas sacas de cereais para o antigo celeiro de Caldas de Aregos e muitos molhos de lenha para junto da estrada e do rio, que depois seguiam para as cidades.
Cheguei ainda a trabalhar na escola de Nogueiró, onde preparava a sopa para as crianças.

Ligações ao Zé do Telhado
Embora tivesse nascido na Aldeia de Castelões, pertencente ao concelho de Penafiel, o meu pai sempre contou, lá por casa, que era parente do Zé do Telhado, por parte do seu avô que era seu primo. Era com orgulho que nos contava que roubava aos ricos para dar aos pobres. Mas o que pouca gente sabe é que foi também um soldado valente que combateu nas guerras liberais sempre a favor dos que menos tinham e contra os que queriam que tudo continuasse na mesma, com D. Miguel a mandar. Contava que, depois de muitos assaltos e algumas mortes, tentou fugir para o Brasil, mas foi apanhado. Felizmente, conseguiu livrar-se da forca, tendo sido condenado ao degredo em Angola, onde casou e teve alguns filhos, segundo dizia.
Nunca pude saber mesmo se de facto sou parente do Zé do Telhado. À aldeia onde nasci só fui duas vezes pouco depois de casar. É natural que ainda lá tenha alguns primos. Nunca tive ocasião de perguntar à família que por lá ficou o que pensavam disto.

Casamento
Comecei a namorar com 19 anos. Vim a casar oito anos depois. Vai fazer 55 anos, no próximo dia 9 de Julho. Naquele tempo, a gente não se podia casar assim sem mais. Para onde é que se ia viver e de quê se vivia?
Encontrávamo-nos nalguns bailes; eu gostava muito de dançar. Também aproveitávamos as desfolhadas para convivermos. Quando aparecia uma espiga preta era uma alegria, pois podia-se abraçar uma pessoa à vontade. Estou convencida que muitos já levavam uma espiga preta de casa. Naquela altura, tinha de se ser muito cuidadoso a namorar, caso contrário os nossos pais caiam-nos em cima e os vizinhos não perdoavam no falatório. Os tempos eram outros. Era muito difícil um rapaz arrancar-nos um beijo. Hoje é tudo muito rápido. Mas também as separações e os divórcios acontecem por dá cá aquela palha.
O meu marido, que está aqui ao seu lado, chama-se Fernando Pinto Campos e nasceu em 24 de Março de 1926. Teve 7 irmãos. Eu nasci, passados dois anos, a 1 de Março de 1928. Os seus pais eram caseiros; pouco tinham. Ainda frequentou a 3.ª classe, mas com a falta de prática deixou de saber ler e escrever. Como deixou de ver bem, mesmo para assinar o nome prefere pôr o dedo. Quando o conheci ajudava os pais na lavoura.
Como não tínhamos para onde ir, quando casámos, fomos viver para casa dos meus sogros durante dois anos. Passado este tempo, o meu sogro teve um desastre com uma malhadeira e nós tivemos de o substituir e tomar conta das terras. Aí nos mantivemos, como caseiros, durante 34 anos.

Família numerosa
Tivemos 9 filhos, estando felizmente todos vivos, e 10 netos. A diferença de idade entre dois filhos é de treze meses. Chegaram a andar cinco ao mesmo tempo na escola. Quando eram pequenos, levava-os para os campos e aí ficavam dentro de um caixotinho. No inverno, para se protegerem da chuva, punham uma saca de serapilheira na cabeça. As roupas eram depois secas ao lume.
Em pequenos ajudaram-nos nas terras e em casa. Com catorze ou quinze anos, começaram a procurar trabalho fora; os rapazes procuraram a construção civil e as raparigas foram servir. Um filho casou aqui em Freigil. Uma filha, por ter um atraso, vive connosco. Dois filhos e uma filha moram em Matosinhos e três filhas em Rio Tinto. Uma outra vive aqui perto, em Ribais, Cinfães. Alguns estudaram à noite. Um deles faz parte de uma Junta de Freguesia e trabalha nos seguros.
São todos muito nossos amigos. Como pôde ver, só durante esta conversa consigo, já recebemos quatro telefonemas. Querem saber se está tudo bem, se precisamos de alguma coisa. Vêm cá muitas vezes. A minha nora, que é tesoureira na Junta de Freguesia de Freigil, que vive lá em cima e que o senhor acabou de conhecer, também se preocupa muito connosco e está sempre disponível para nos ajudar. No Natal, podem não vir todos consoar connosco, pois ano sim, ano não, vão a casa dos sogros, mas, no dia seguinte, estão cá todos.
Temos o nosso quintal todo cultivadinho também a pensar nos nossos filhos, sobretudo os que vivem em Rio Tinto e Matosinhos. Quando cá vêm, podem levar das nossas curiosidades: alfaces, tomate, fruta, batatas…
Às vezes, o meu marido diz-me: temos isto tão bonito, até parece um jardim, mas, quando morrermos, isto vai ficar tudo ao abandono; nenhum filho quer vir para cá viver, pois já têm as suas vidas organizadas e têm lá, na cidade, mais comodidades. Eu não me preocupo. De que me serve? Vê estas terras aqui ao lado; já fomos caseiros lá e agora está tudo ao abandono; nunca os meus patrões imaginaram que as coisas haveriam de ficar assim.

Vida dura/vida tranquila
Depois de casados, fomos caseiros, sempre com os mesmos patrões, durante 34 anos. Tivemos de trabalhar muito para criar os nossos filhos. Felizmente, umas vezes comiam melhor, outras pior, mas nunca houve fome cá em casa. Muitas vezes, comíamos uma cebola, partida ao meio, com sal e vinagre, e pão. Os meus pais e os meus sogros também lutaram muito para que os filhos não passassem necessidades. O meu pai foi um moiro de trabalho. Muitas vezes, saía na segunda-feira e só voltava na sexta ou sábado, ganhando os dias serra acima.
Criávamos uma junta de vacas, duas ou três ovelhas, galinhas, coelhos e um porco. Cozíamos pão todas as semanas. Trazíamos a mercearia e outras coisas fiadas do vendeiro, que eram pagas pelos Santos com o preço equivalente em cântaros de vinho, que o mesmo recolhia pelas casas num odre. Na maioria dos anos, em Abril, já não havia vinho e, a partir daí, tinha de se beber fiado. Mas, no fim, tudo se pagou e tudo veio a bater certo.
Era raro sair daqui. Íamos à vila de Resende, às feiras e ao médico, e a Lamego, à Senhora dos Remédios, e pouco mais. Apanhar o comboio era uma novidade. Há cerca de 50 anos, o meu marido teve de ir ao Porto a uma consulta médica com um filho. Não esteve com meias medidas. Em Mosteirô, apanhou o primeiro comboio que apareceu. Quando se informou junto do revisor, apercebeu-se que ia em sentido contrário. E lá saiu na estação de Caldas de Aregos para apanhar o comboio devido.
Não se comprava roupa nenhuma. Era tudo feito em casa por uma costureira. Ela trazia a máquina de costura e era paga ao dia. Depois comprei também uma. Dava jeito para fazer pequenos arranjos e para remendar. Aprendi a coser com a minha mãe.
Há 20 anos entregámos as terras, deixando de ser caseiros. Algum tempo antes, uma das patroas resolveu dar-nos um bocado de terra para fazer uma casa, com um quintal. Começámo-la a construir há 25 anos. Foi sendo feita aos poucos. É só de um piso, como vê. O quintal dá-nos tudo. É uma forma de nos distrairmos. Nunca tivemos o costume de ir ao café. Agora, o meu marido também não pode por causa das pernas. Não pode andar muito nem ficar de pé. Por isso, com grande pena, deixou de ir à missa. Mas continua a trabalhar no campo. A lida da casa e as refeições são feitas por mim.
De vez em quando, vamos passar uns dias com os filhos a Matosinhos ou Rio Tinto. Eu não me importo e até gosto de mudar de ares. O meu marido quer logo vir embora. Aqui é que se sente bem. Repete com muita frequência que o que gostava mais era ter sessenta anos. Estes ares dão-lhe saúde. Para ele esta terra é um paraíso.
O meu marido tem mais saúde que eu. Foi operado às cataratas há dois anos. Eu já fiz várias operações. Já estive no IPO durante dois meses. Também já me rebentou uma veia na cabeça há 20 anos, tive duas pneumonias e já fui operada à garganta e às cataratas. Tenho de tomar 10 medicamentos diferentes por dia; o meu marido toma 7. Tenho falta de apetite e o meu marido acha que estou um bocado esquecida.
Preocupa-me a situação da minha filha, que precisa de apoio, e que se encontra connosco.
Beba mais um copinho. Não imagina como gostámos de falar consigo. Razão tinha a minha nora quando lhe disse que precisava pelo menos de duas horas para conversar connosco, pois para falar o que custa é começar.
Os fins de semana são sempre uma novidade. Quando menos se espera, um ou outro filho telefona a dizer que vem cá almoçar. E a casa de repente enche-se de alegria.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Julho de 2010
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