segunda-feira, 27 de setembro de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM S. JOÃO DE FONTOURA: Chamo-me Antonino Loureiro e nasci na Quinta do Bairro, S. João de Fontoura, há 97 anos*

Ligação à Casa de S. José
Devo ser o homem mais velho da freguesia de S. João de Fontoura. Nasci a 19 de Setembro de 1912, pouco depois da implantação da república. Mas, naquele tempo, falava-se pouco de política. Jornais não havia e pouca gente sabia ler. Ainda andei na escola, aqui ao lado, talvez durante dois anos, embora não fosse obrigado. A professora batia muito. Apanhei muita reguada e bastantes vergastadas. Por isso, fui perdendo a vontade de ir à escola. E depois os meus pais também me obrigavam a trabalhar. Era preciso fazer recados, mondar erva ou guardar gado por esses montes acima. Ainda cheguei a saber escrever o nome e a ler devagar. Mas é preciso prática, conforme diz o ditado “usas e serás mestre”.
Os meus pais foram sempre caseiros da Casa de S. José. Tiveram sete filhos. Ainda tenho um irmão vivo, que mora para além de Moimenta da Beira. Por isso, conheço bem a história da Casa de S. José, que ajudou a educar muitas raparigas.
Com quinze anos, comecei a ganhar o dia fora. Com essa idade, fui para as vindimas pró Douro carregar cestos. Cheguei a ir quatro ou cinco vezes em rogas às vindimas. De dia carregava cestos. À noite, ia pró poço sovar as uvas durante quatro horas. Íamos numa roga e levávamos uma broa. Só se vinha no fim das vindimas. Mas nem tudo era mau. No fim do dia, havia música, bailes e muita animação. Estive numa quinta, em Loureiro, onde o dono, o senhor D. Manuel Vasco, comprou uma concertina para que não faltasse música. Ele e a sua esposa, a senhora D. Leonor, vinham para a varanda para nos ver cantar e dançar. A sua maior alegria era ver-nos satisfeitos.
Também fui em várias rogas para a poda no Douro. Quem me ensinou a podar foi o meu pai. Mas a maneira de podar as videiras no Douro é diferente. Fui vendo e aprendendo.
Na inspecção fiquei apurado para auxiliar, mas nunca me chamaram.

Namoro e casamento
A minha mulher, que está aqui ao seu lado, chama-se Sidónia Fonseca e nasceu aqui perto, na Quintã, que já pertence à freguesia de S. Martinho de Mouros. Tem este nome, porque o pai andou na 1.º guerra mundial, tendo sido com Sidónio Pais, como Presidente da República, que terminou a guerra e regressou a Portugal. Em agradecimento, prometeu chamar Sidónio a um dos filhos, mas como nasceram só filhas, conforme pedido a Deus para não irem para a guerra, disse aquando do nascimento da minha mulher ”já que não podes ser Sidónio, ficas Sidónia”. Eram sete irmãs. A Sidónia mais as irmãs passavam por estes caminhos quando iam para as feiras vender chapéus. Engracei com ela e ela comigo. Namorámos três anos. Casei com 28 anos e a Sidónia com 22 anos. O namoro foi sempre às escondidas. O meu sogro era cesteiro e a minha sogra chapeleira. O meu sogro não queria que as filhas se casassem, talvez com medo de não poder contar com a ajuda de tantos braços para fazer e vender chapéus de palha pelas feiras. Era capaz de desconfiar, mas não dizia nada.
O casamento foi combinado sem os meus sogros saberem. Foi já nas vésperas que um vizinho disse ao meu sogro e uma das minhas futuras cunhadas contou a novidade à mãe.
Como já lhe disse, o dinheiro que fui ganhando entregava-o aos meus pais. Não ficava nada para mim. Só comecei a ver a cor do dinheiro dois anos antes do casamento. Foi com este dinheiro, que fui juntando e poupando, que consegui pagar as despesas. E mesmo assim tive sorte, pois o Sr. P. Zé, o Reitor de S. Martinho, não levou nada, pois era o meu padrinho de baptismo. O casamento foi na igreja matriz de S. Martinho de Mouros, por causa da minha mulher ser da freguesia. A boda foi feita em casa dos meus pais. A minha mãe fez um arrozinho melhor com uma carninha. Estiveram presentes os meus irmãos, duas cunhadas e dois ou três amigos mais chegados. Os meus sogros não quiseram vir. Não tinham alegria em que a filha se casasse, embora gostassem de mim e dos meus pais. Eram até amigos. Quanto à minha mulher, os meus pais sempre gostaram dela. Queriam-lhe como filha.

Filhos e netos
Depois de casados, fomos viver para uma casa arrendada, que depois comprámos. A minha mulher continuou a fazer chapéus e eu ganhava os dias fora. Cheguei a ganhar 25 tostões. Quando nasceu o terceiro filho, agarrámo-nos também a umas terrinhas como caseiros. E a minha mulher deixou a arte de chapeleira.
Tivemos nove filhos. Sete (três rapazes e quatro raparigas) ainda estão vivos. Uma menina morreu com seis semanas e um rapaz morreu com vinte e três anos, num desastre de jipe, em trabalho. Terminou o antigo 9.º ano no Seminário de Resende e não quis ir para o Seminário de Lamego para não sobrecarregar os pais. Foi um desgosto muito grande. Talvez seja por causa disso que nunca consegui deixar de fumar. Se não tivesse abandonado o Seminário, talvez ainda fosse vivo. Mas só Deus sabe.
Os meus filhos fizeram todos a 4.ª classe, pelo menos. Muitos continuaram a estudar mais tarde. Aprendi a falta que faz não saber ler nem escrever. A minha mulher é que teve juízo, pois fez a terceira classe, o que deu muito jeito para nos podermos corresponder com os nossos filhos. Por isso, quando estes fizeram sete anos e entraram na escola, fizemos tudo para que não faltassem às aulas e fizessem os deveres marcados pelos professores. Só depois é que nos ajudavam.
Viveram connosco até aos quinze/dezasseis anos. Depois foram trabalhar para a zona de Lisboa ou emigraram. Agora vivem nos concelhos à volta de Lisboa. Estão todos casados.
Temos doze netos e três bisnetos.

Vida de trabalho
Vivemos sempre aqui na Quinta do Bairro. Para poder educar tantos filhos tivemos de trabalhar muito. Dava dias fora para ganhar mais algum dinheiro e, ao mesmo tempo, amanhava as terras como caseiro. Para arranjar tempo cheguei a sachar e a cavar noite dentro, à luz do luar, muitas vezes até depois da meia-noite.
Antigamente era difícil arranjar patrões para ganhar o dia. Havia muita gente nova. Mas eu posso gabar-me de nunca me ter faltado trabalho. Numa casa, cheguei a trabalhar durante nove anos. E não queriam outro. Havia gente que me pedia para ir trabalhar, mas já estava comprometido.
Nas terras que fiz nunca criei vacas para lavrar os campos ou puxar carros. Quando precisava, tinha de pedir. A paga era depois feita com o corpo ou em dinheiro. Só criava uma vaca. Depois de parir, deixávamos crescer a cria para depois a vendermos com a mãe. A seguir comprávamos outra. Precisávamos de fazer dinheiro, pois as despesas eram muitas.
O dono da casa onde vivíamos pô-la à venda e não pudemos perder a oportunidade de a comprar. Na altura, só tínhamos dinheiro para a escritura. O Leitão de Forjães é que nos emprestou o dinheiro. Houve um senhor que ficou por nós como fiador e lá a fomos pagando aos poucos. Depois também apareceram para aí umas territas que comprámos. Mas hoje está tudo de velho, cheio de silvas.
Deixei de ser caseiro, quando tinha à volta de setenta anos. Não podia continuar a trabalhar por causa das pernas.

Mazelas da idade
Deveria ter 25 anos quando tive um acidente com uma vista. Fui à caça com uma daquelas armas de carregar pela boca. Quando estava a carregá-la, tive azar e saltou um estilhaço para uma das vistas. Os médicos ainda tentaram tudo, mas a vista ganhou infecção e não houve outro remédio a não ser tirá-la. Mas consigo ver bem. Sou capaz de ver melhor com uma vista do que você com duas.
Há bastantes anos tive uma úlcera no estômago. À base de medicamentos receitados pelo Sr. Dr. Ribeiro, dieta e chás, consegui curá-la ao fim de nove anos. Na altura sofri muito, pois doía-me muito o estômago e tinha muitas indisposições. Felizmente hoje posso comer de tudo.
O grande problema são as pernas. Já fui operado três vezes. Por isso, aqui em casa ando devagarinho para não cair. O médico já me disse “se um dia tiver o azar de cair, fica todo partido e já não tem conserto”. É por isso que não posso sair de casa.
Durmo bem. E ainda me recordo de tudo. Para a idade que tenho tomo poucos medicamentos. Aqui a Sidónia é que toma muitas pastilhas. Não se contenta com uma ou duas. É aos punhados de cada vez. Veja bem, há uns dias ela disse a um filho meu para ir à farmácia aviar uma receita e deu-lhe cem euros. O meu filho perguntou “para que é preciso tanto dinheiro?”. O que é certo é que só trouxe cinco euros de troco.
A minha mulher também está muito lúcida. Sente-se muito cansada dos braços e das pernas e custa-lhe a dormir. Desde há cerca de sete anos que uma senhora vem cá a casa ajudar a fazer as refeições e a lida da casa.

Amor à terra
Ultimamente temos ido passar a época de Natal com os nossos filhos. Vamos em Dezembro e voltamos em Março. Lá pelas bandas de Sintra ou Mafra atura-se melhor o Inverno. E sempre estamos junto da família. Mas lembra-me sempre a terra onde nascemos e vivemos. Eu tenho mais saudades que a minha mulher. Aqui a água é que mata bem a sede e os ares dão saúde. Desta minha varanda avisto o mundo todo. Daqui consigo ver S. Martinho, a serra das Meadas, o Marão e o rio Douro. Sinto-me bem na Quinta do Bairro. Já não tenho forças para trabalhar a terra, mas gosto de a ver e de lhe sentir o cheiro.
O meu pai morreu com setenta e tal anos e a minha mãe com oitenta e tal. O meu sogro viveu cinquenta e três anos e a minha sogra noventa. Nada mau para quem viveu com dificuldades. A média de idades é bonita. Nós temos de viver um dia de cada vez.
Gosto muito de conversar. Antigamente conhecíamos toda a gente. Trabalhávamos uns com os outros. Andávamos sempre a pé. Íamos às festas e feiras. Éramos obrigados a encontrar-nos. Agora as pessoas metem-se em casa a ver televisão e andam de carro. E há cada vez menos gente. Eu mesmo que queira não posso sair de casa para não malhar no chão. Mas ainda há uma gentinha que passa cá por casa. E no Verão os filhos e netos vêm até cá.
Ao seu pai, o Alfredo, e ao seu tio, o Delfim, conheci-os muito bem. Foram grandes artistas. Trabalharam muitos anos na Casa de S. José. Os fidalgos e as pessoas importantes da altura só os queriam a eles. Não calcula a amizade que lhes tinha.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Agosto de 2010

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