quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A ACADEMIA PORTUGUESA DA HISTÓRIA VAI CELEBRAR 190 ANOS*

Com um programa à altura da efeméride e que acabo de receber pelo correio com o respectivo convite, no próximo dia 8 de Dezembro, vai celebrar cento e noventa anos de vida e de trabalho a Academia Portuguesa da História, a mais antiga Academia do país, e uma das mais ilustres e beneméritas academias cientificas da nação.
Do programa, constam como actos principais uma celebração solene da Eucaristia na Capela do Colégio de S. João de Brito, e uma Sessão Solene no Salão Nobre da Academia, em que serão oradores especiais o Prof. Dr. Veríssimo Serrão, seu Presidente de Honra, a actual Presidente, Prof. Dra. Manuela Mendonça e o Secretário de Estado da Cultura, Dr. Elísio Summavielle.
A Real Academia da História Portuguesa (assim se chamava na sua primeira vigência), foi fundada pelo rei D. João V, por decreto de 8 de Dezembro de 1720 – dia da solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora - e teve como seu primeiro inspirador Manuel Caetano de Sousa, clérigo regular e grande homem de letras. O programa inicial da Academia era que “se escrevesse a história eclesiástica destes Reinos, e depois tudo o que pertencesse à história deles e das suas conquistas”.
Estimular e coordenar esforços tendentes ao rigoroso conhecimento da história nacional, no sentido de esclarecer a contribuição portuguesa para o progresso da Cultura e da Civilização, e promover a publicação sistemática de fontes documentais que interessem à História Portuguesa, são os grandes objectivos actuais da Academia.
Depois de um interregno de alguns anos, a Academia foi recriada pelo Decreto-Lei n° 26611, de 19 de Maio de 1936.
Constituída actualmente por 40 “Académicos de Número” (30 de nacionalidade portuguesa e 10 de nacionalidade brasileira), 46 “Académicos Honorários” (36 portugueses e 7 estrangeiros), 183 “Académicos Correspondentes” (84 de nacionalidade portuguesa, 18 de nacionalidade brasileira e 81 de outros países estrangeiros) e 91 “Académicos de Mérito” (24 portugueses e 71 estrangeiros), a Academia Portuguesa da História poderá definir-se como uma «agremiação de especialistas que se dedicam à reconstituição documental e crítica do passado», sendo igualmente o “órgão consultivo do Governo na matéria da sua competência» (art°. 3 dos respectivos estatutos).
Cada um dos seus membros, para além do seu diploma de académico, e do colar de honra que deve usar em todas os actos da Academia, possui um cartão de identificação que lhe facilita a entrada nos Arquivos e nas Bibliotecas Nacionais.
Como publicações habituais da academia, o “BOLETIM ANUAL” donde constam os nomes, o endereço e as obras publicadas por cada um dos seus académicos e as actas de todas as sessões realizadas ao longo do ano, e os “ANAIS”, onde são publicadas todas comunicações apresentadas na academia pelos senhores académicos.
A Academia, com uma Biblioteca riquíssima, tem actualmente a sua sede no Palácio dos Lilases - Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa. É aí que se reúnem os senhores Académicos para debaterem os grandes temas da História, e para homenagearem os seus membros mais ilustres.
Como é costume dizer-se em bom latim
“AD MULTOS ANNOS”!
Resende, 25 de Novembro /10
*Joaquim Correia Duarte

terça-feira, 9 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM MIOMÃES: Chamo-me Henrique Saraiva e nasci em Miomães, há 88 anos*

Tempos de infância e juventude
Nasci em 11 de Março de 1922, já lá vão uns bons anitos. Ainda estou aqui rijo para o que der e vier. Sou de boa cepa, pois o meu pai viveu 87 anos e a minha mãe 90. Éramos 4 irmãos. Sou o único que continua vivo. Um deles teve um acidente com uma explosão de carboneto, que o deixou cheio de mazelas, tendo morrido pouco depois de uma queda, tinha então 18 anos.
O meu pai foi arrais no rio Douro; conduzia barcos de que era proprietário. Por isso, se chama arrais; um mestre governa qualquer barco. Começou como marinheiro. Depois, com dinheiro que foi juntando e outro emprestado, adquiriu 5 barcos. O primeiro tinha capacidade para cinco pipas. Os barcos, que serviam sobretudo para transportar vinho do Porto para as grandes casas de Gaia, mediam-se não por tonelagem, mas pela quantidade de pipas.
A minha mãe fazia e vendia rosquilhos nas feiras. Depois de casada, o meu pai trazia caixas de sardinha do Porto e ela ia vendê-la para S. Romão. Há até um episódio engraçado que vale a pena contar. Uma certa vez, a minha mãe encontrou uma sardinha muito grande, mas bastante moída. “Quem vai ficar com esta é o ferreiro, só preciso de lhe enfiar um chamiço para disfarçar”, pensou. E assim fez. Ficou danado. Quando a encontrou, disse: “quando quiser carvão, compro-o”.
Admiro muito o meu pai. Certa vez, o Sr. Padre Joaquim Correia Duarte perguntou-me quem era o homem que mais admirava e eu respondi: “o meu pai; se quiser, eu digo-lhe porquê”. Era um homem muito recto e trabalhador. Marcou-me a atitude que teve perante este facto que lhe vou contar e me atormentava. Um dia, já não podia mais e disse-lhe: “a Celeste está grávida”. Ao contrário do esperado, respondeu serenamente: “tudo se há-de arranjar; tens é de assumir as tuas responsabilidades; vai falar com o Sr. Padre e marca o casamento quanto antes”.
O meu jardim de infância foi o rio Douro. Com 3 anos, o meu pai punha-me a nadar agarrado a uma corda. Desde pequeno perdi o medo à água. Fiz a escola primária aqui em Miomães. O exame da quarta foi feito em Resende. Quando fui para a escola já sabia ler e escrever, ensinado pelo meu irmão mais velho. Sempre fui precoce em tudo. Também já sabia o nome dos reis de Portugal e muitos episódios de história. O professor até me punha a ensinar os colegas mais fracos. Quando terminei a escola, fui aprender a arte de alfaiate. Mas só lá estive 10 meses. Tinha de fazer só aquilo que o mestre entendia e ainda tinha de pagar. Um dia, meti-me num barco, que foi sempre o meu sonho, e fui até ao Porto como moço ajudante. Quando voltei, o mestre de alfaiate já não me quis lá mais. Por isso, fui para o Porto, para uma oficina de alfaiate, onde ganhava um escudo e cinquenta centavos. Depois de algumas malandrices, voltei cá para a terra e tentei continuar a aprender a arte de alfaiate, agora com um mestre de Oliveira do Douro.
Tinha 14 anos e fui num barco até ao Porto. Ao passar numa rua muito movimentada, vi um senhor a cortar peças de roupa e a fazer um fato, tudo com muita mestria. Fiquei estupefacto. Ao ver-me assim tão interessado, chamou-me e disse: “queres ver como se trabalha?; anda cá que eu ensino-te”. Fiquei com ele dois dias. Foi um verdadeiro curso intensivo. Saí de lá um verdadeiro mestre. Ainda me lembro bem do nome desse estabelecimento. Chamava-se “Casa Londres”. Cheguei cá a casa todo entusiasmado. Peguei num fato do meu pai, desmanchei-o e fiz um fato para o meu irmão mais velho. O meu pai nem queria acreditar. Comprou uns metros de cotim e disse: “agora faz um fato para mim”. Ficou impecável. A seguir fiz uma samarra para o Sr. Joaquim Pinto, de Miomães. Esta minha habilidade começou a constar e a clientela apareceu.
Fui alfaiate até aos 23 anos. Os fregueses só pagavam de ano a ano, com o dinheiro que faziam das colheitas ou do gado.

Depois do casamento
Casei com 21 anos e a minha mulher com 19. Era aqui vizinha e comecei a gostar dela desde catraia. Com 15 anos, não resisti. Um dia, ia a passar, chamei-a e disse-lhe: “não imaginas quanto gosto de ti; se dependesse só de mim, havia de casar contigo”. Vi que ficou muito satisfeita. Logo ali, não hesitou em responder-me que também gostava muito de mim. Na missa, ia sempre para o coro da igreja para a ver melhor. E os nossos olhares chegaram a cruzar-se muitas vezes.
Quando casámos, fomos viver para uma casa dos meus pais. Com uma filha para manter, não podia continuar a viver da arte de alfaiate, já que as pessoas só pagavam de ano a ano. Mudei de ramo. Dediquei-me a comprar folhas de loureiro, tília e cornelhos, que depois vendia no Porto. O dinheiro para o negócio era emprestado pelo Sr. Jerónimo Moreira, talvez o maior comerciante do concelho de Resende. Um dia, como fazia regularmente, fui vender a mercadoria, mas o senhor Emílio Vilar disse: “tenho muita pena, mas o preço do cornelho baixou muito e eu não te posso pagar mais que isto”. Nessa altura, perdi bastante dinheiro, mas mesmo assim fiz bem, pois o cornelho ainda baixou mais.
Com o dinheiro que tinha juntado, comprei uma casa por 25 contos, tendo dado de entrada 10 contos. Depois de fazer algumas obras, montei uma mercearia e tasca. Mas tive vários problemas com este negócio, por causa da venda do vinho. Preferia não vender a indivíduos já tocados; os bêbados eram expulsos. Cheguei a andar à porrada por causa disso. E naquele tempo também havia muitos fiados. Atingi doze contos de dívidas. Tinha então 30 anos e 4 filhos para manter.

Em Angola
Para dar um novo rumo à vida, resolvi ir para Angola. Naquele tempo, era preciso uma carta chamada, que consegui com alguma facilidade. Segui primeiro. A mulher veio depois com quatro filhos e uma filha de três meses, que não conhecia, pois, na altura em que embarquei, ainda estava na barriga da mãe.
Comecei a trabalhar numa cervejaria, no dia 29 de Setembro de 1952. O emprego ficou apalavrado no dia 28 para começar a trabalhar no dia 1 de Outubro. Mas eu disse: “vou já amanhã, mesmo que trabalhe de graça dois dias. No fim de Outubro era para receber 1 conto e 800, mas deram-me 2 contos. A cervejaria chamava-se Biker e cheguei a receber um prémio por ter sido considerado o melhor tirador de cerveja. Estive aqui 15 meses.
Depois adquiri um alvará de uma loja comercial para trabalhar por conta própria, mas fui vigarizado, pois vim a verificar que só estava autorizado a vender fruta e hortaliça. Ao cabo de 2 meses, tive de me desfazer do negócio.
Vi-me assim desempregado, com mulher e 5 filhos para sustentar. Um senhor, ao saber da minha situação, sugeriu-me que me dedicasse à distribuição e venda de camarão, tendo-me emprestado 500 escudos. Sei que no primeiro mês ganhei 6 contos, vendendo camarão pelos cafés e até em casas particulares. Um dia, cheguei à conversa com uma senhora que ficou admirada por ter cinco filhos e disse-me para ir lá a casa lanchar com a família. Nessa tarde, foi dizendo: “por que não vai para um serviço do Estado?; sempre é mais seguro, tem garantia de reforma e abono da família…; dê-me o seu bilhete de identidade; na sexta-feira vem cá o Director Geral dos Correios e eu vou falar-lhe no seu caso”.
E fui bem sucedido. Perguntaram-me se sabia ler e escrever. Fiz um ditado e nem um erro dei. Fiquei colocado na central dos correios de Luanda. Entretanto, tive um desentendimento com um chefe de secção e fui para Moçâmedes. Aqui vim a fazer o antigo segundo e quinto ano, que completei em dois anos. Ainda estava aqui quando a minha mulher apanhou o vírus do deserto. O médico disse-me: “se queres mulher, manda-a para a Metrópole, que ela cura-se logo”. E assim foi. Veio ela e mais dois filhos, tendo um deles entrado no seminário de Resende.
Em 1957, concorri para o serviço das alfândegas. Já o tinha feito antes, mas na altura não tinha o registo criminal. Apresentaram-se cento e trinta e três concorrentes, tendo ficado em primeiro lugar. Quando soube da novidade até desmaiei. Quem me deu posse foi o director da alfândega de Mocâmedes, o Sr. Areosa, que era irmão do Dr. Areosa, conhecido médico em S. Martinho de Mouros. Fui colocado em Novo Redondo, onde estive dois anos. Depois, em 1959, vim para Luanda para os serviços centrais, onde fui o responsável pela montagem e organização de todo o arquivo das alfândegas.
Viemos cá de férias em 1963 e 1970. Com a descolonização iniciada com o 25 de Abril, regressámos definitivamente em Novembro de 1974. Do tempo que estive em Angola só me contaram 22 anos para a reforma. Cá, ainda abri uma mercearia, que passei depois a um dos filhos.

Incursão pela política, poesia e muitas histórias para contar
Com o 25 de Abril, o clima era propício para se fazer qualquer coisa pela sociedade e pela mudança da situação no nosso concelho, onde estava tudo muito parado. A forma de o fazer era a militância num partido. Por ser o que mais se aproximava da defesa dos meus valores e da minha formação, filiei-me no CDS, tendo sido presidente da comissão concelhia durante 13 anos. Na sequência das primeiras eleições autárquicas, fui vereador nos anos de 1978 e 1979, em substituição do Sr. Couto. Mais tarde, também em regime de substituição, voltei a ser vereador em 1988 e 1989. De uma das vezes, instigado pelo Prof. Adriano Moreira, fui cabeça de lista e candidato a presidente da Câmara. Foi uma época bem agitada da vida. Acho que dei o meu contributo válido à vida política local. E também aprendi muito do carácter das pessoas.
A propósito da política e do carácter, lembro-me de um episódio que me marcou para toda a vida. Era eu ainda garoto e discutia-se na altura quem tinha feito determinada asneira. Nisto aparece uma tia minha que disse convicta: “o meu sobrinho não fez isto; o meu sobrinho não mente”. Esta frase influenciou-me tanto que, se não mentia no passado, nunca mais poderia mentir.
A minha mulher sempre foi tudo para mim. Infelizmente, já morreu há quinze anos; tinha ela setenta e um anos. Comovo-me sempre quando falo nela. Foi mesmo o único e grande amor da minha vida. Os meus dois livros de poesia, “Flores de Outono” e “Flor Silvestre”, são-lhe justamente dedicados, sem esquecer os meus seis filhos, nove netos e uma bisneta. Sempre gostei de fazer rimas. Cheguei a ganhar um prémio, em Novo Redondo, a propósito da Gazcidla, com esta rima bem singela: “Já Eva dizia ao Adão/Sem Gazcidla não, não e não”.
Em Angola, colaborei em vários jornais. Agora, felizmente convidam-me para falar nas escolas. Já fui também várias vezes ao Museu Municipal contar às crianças como era a vida ligada aos barcos rabelos e ao Douro e até já criei para eles muitas histórias e lendas. Gosto muito de comunicar, respondendo às perguntas e curiosidades das crianças. O novo projecto, previsto para o ano, é falar/animar grupos de pessoas idosas.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Artigo de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Outubro de 2010
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