sexta-feira, 7 de maio de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM ANREADE: Chamo-me Fernando Manuel Pinto e nasci em Resende há 80 anos*

Tempos de criança
Antigamente, a vida era muito difícil. O que interessava mais era ter saúde e chegar a mão ao bolso e haver por lá algum dinheiro para responder às necessidades mais urgentes. Ainda recebi um convite de Henrique Cardoso, emigrado no Brasil, um sobrinho da D. Belmira, de quem o meu pai era caseiro, que cá veio em visita, tinha eu 28 anos. Ao ver a Quinta do Concelho que lhe caberia de herança, disse-me: já viste?, isto são uns bocadinhos que não valem nada; é preciso trabalhar no duro e mesmo assim continua-se na miséria; no Brasil, os terrenos que tenho, a que chamam fazenda, são maiores do que aquilo que os teus olhos conseguem abarcar daqui; o que lá farias era acompanhares-me nas minhas deslocações; caso não te adaptes, ponho-te cá outra vez sem qualquer despesa. Mas mesmo com estes atractivos não quis ir. Tinha a minha mulher muito doente. Não ia cá deixá-la assim. Depois, mais tarde, recebi um outro convite, dessa vez para emigrar para França. Também não aceitei. Sempre prezei a companhia da família e não estou arrependido.
O meu pai casou duas vezes. Da primeira mulher, que morreu de parto, teve seis filhos e da segunda cinco, sendo eu o mais velho desta. Do total, estamos vivos quatro: dois rapazes e duas raparigas, morando cá três e um no Porto.
Comecei a trabalhar com cinco anos, sempre na lavoura. Os meus pais eram caseiros. Em pequeno, ajudava a guardar o gado, deitava a água às lameiras e limpava as ervas. Entretanto, os meus meios irmãos foram saindo de casa para servir. Uma das tarefas era comprar tabaco para o meu pai, que não se podia ver sem ele. Quando demorava muito, já sabia que apanhava uma tareia. Lembro-me de uma vez ele ficar tão transtornado que puxou de uma correia, dando-me tantas que até a fivela saiu. Não valeu de nada dizer-lhe que estava muita gente na venda, pois disse-me que os donos já sabiam que as crianças são sempre as primeiras a ser atendidas. Às vezes, nem com dinheiro era possível comprar, pois havia senhas por causa da guerra. Por isso, recordo-me de ir várias vezes para a entrada da Câmara Municipal, onde nos intervalos se juntavam muitos empregados a fumar cigarros de cabeça amarrada. Quando iam para dentro, deitavam-nos fora. Aproveitava os restos, o que sobrava, e entregava-os ao meu pai, que ficava todo contente. Depois deitava as sobras em folhas de mortalhas, enrolava-as e lá fumava.
Infelizmente, não fui à escola. Sempre tive muita pena e acho que me fez falta. Mas o que é que quer? Não éramos obrigados e os meus pais precisavam de nós para trabalhar. Nem se punha a hipótese de ir. Só os filhos dos patrões e de alguns empregados da Câmara é que aprendiam a ler. É graças ao Sr. Padre Artur que leio qualquer coisa e conheço os números. Tinha eu cerca de vinte anos quando fui ter com ele para me ensinar e a outros com vontade. Apareceram mais quatro rapazes. Juntávamo-nos à noite em casa do Sr. Padre e lá aprendemos qualquer coisa. Assino o meu nome, leio os títulos grandes dos jornais, conheço os números todos e faço chamadas.
Em pequeno, andávamos quase todos descalços. Mesmo à missa e à catequese íamos descalços. O dinheiro não dava para mais. A planta do pé criava uma espécie de casco como os cavalos. Quando enfiávamos algum prego ou, se calhava dar algum pontapé nalguma pedra, é que era pior, até víamos estrelas. Os primeiros sapatos que tive foi na altura de ir à inspecção, mas eram todos de borracha por baixo e por cima, como as galochas que agora se fazem.
Passei alguma fome. Sobretudo numa altura em que o meu pai entregou as terras e arrendou uma casa sem terrenos. Não tínhamos lenha nem couves para fazer caldo. Uma vez, tinha p’ra aí doze anos, a fome era tanta que disse à minha mãe: vou pedir umas folhas de couves. E lá fui pela aldeia, mas todos recusavam. Bati à porta de uma senhora que tinha o quintal cheio de couves com folhas todas verdinhas, mas desculpou-se com a chuva. Fiquei magoado e triste. Dei uma volta, e como a fome puxava, consegui apanhar umas folhas sem ser visto. Nunca me doeu a consciência nem me cheguei a confessar. Acho que não cometi nenhum pecado. Que é que acha? Só quando os meus pais foram para caseiros da Quinta de Cima, em Santo Amaro, começou a haver mais fartura, vinda daquilo que a terra dava.

Percurso após a inspecção militar
Não cheguei a ir à tropa. Na inspecção feita na Câmara, fiquei livre, devido a um pedido do chefe das finanças. A sogra, a D. Belmira, precisava de mim, pois trabalhava muito para ela. Mais tarde, voltei a ser chamado para uma nova inspecção em Vila Real. Pediram-me para indicar qual a profissão que tinha. Disse-lhes que era barbeiro só para despachar. De facto, eu nunca gostei de ser barbeiro, pois acho que é uma profissão suja e depois há aqueles bafos mal cheirosos. Fiquei livre na mesma, pois já estava tudo combinado para ficar livre.
Casei-me com vinte e cinco anos. A casa dos caseiros da Quinta de Cima tinha um quarto com entrada independente, tendo a patroa, a D. Belmira, pedido ao meu pai para mo ceder. Continuei a ajudar os meus pais na lavoura, que em troca me dava cem escudos por mês, dando também uns dias fora. A minha mulher teve a infelicidade de ter uma doença nos pulmões. Se calhar já a tinha quando nos casámos. Veio a falecer passados cinco anos depois do casamento. Passou a maior parte do tempo num sanatório, em Abraveses/Viseu. Ainda tivemos dois filhos, tendo um morrido com um mês e o outro com três semanas.
Voltei a casar, tinha eu trinta e um anos, por coincidência, com uma prima da primeira mulher. Acompanhava muitas vezes a tia, a minha sogra, até nossa casa para ver e tratar da filha. Depois da morte da prima, veio várias vezes a casa fazer as limpezas e eu sei que o povo ia falando. Um dia estávamos juntos, e um cunhado, casado com uma irmã dela, disse: vocês os dois é que estavam bem um p’ra outro, notando um sorriso de contentamento naquela que viria a ser a minha futura mulher. Passados dias, lancei-lhe o desafio: que achas daquelas palavras do teu cunhado, aceitavas mesmo casar comigo? Ao que ela respondeu que sim. Mas tu já namoras?, disse-lhe eu. Não faz mal, rematou. E foi assim. Casámos pouco depois. Tivemos cinco filhos, três rapazes e duas raparigas.
Continuei no mesmo sítio até aos 35 anos, ajudando o meu pai e a dar uns dias fora. Depois fui para uma casa com uns terrenos, que fazia a meias, onde estive dois anos. Daqui fui para a Quinta do Bairral, onde fui caseiro durante vinte anos, saindo de lá com 57 anos. Ao princípio, fazia as vessadas por trocas. Mas comecei a ver que isto não dava, pois passava muitos dias a ajudar os outros. Muitas vezes, precisava de doze trabalhadores. Vali-me de um senhor de S. Romão que conhecia muita gente. Era ele que me ficava de arranjar as pessoas de que precisava. Em relação aos outros trabalhadores, como compensação, pagava-lhe mais cinco escudos por dia. Criava uma vaca e muitos porcos, que vendia depois de cevados, fazendo algum dinheiro. O que era de rasa (cereais) e cântaro (vinho e azeite) era dividido a meias. O resto, as miudezas, ficava para mim. Os meus filhos foram ajudando até fazerem 12 anos. No que toca aos rapazes, meti-os na arte.
Deixei a quinta, porque foi vendida. Fui viver para uma casita que, entretanto, tinha comprado em Santo Amaro, tendo-me acompanhado um dos rapazes e uma das raparigas. Fui fazer de meias uns terrenos da Quinta do Concelho e, por fim, uns campitos cá mais para baixo, que ainda cultivo a meias (vinho, fruta e batatas).

Recordando facetas do passado
Só fui três vezes às vindimas ao Douro. Não podia ir, porque tinha de tomar conta das terras. Também nunca estive muito ligado à vida do rio, embora muitas pessoas de Anreade dependessem dele. Havia vários pescadores e abundava muito peixe antes da barragem ( enguia, sável e lampreia), que era depois vendido porta a porta. As mercadorias eram transportadas rio abaixo e rio acima por barcos, que tinham de ser puxados em determinados sítios por juntas de bois, em Mancela, Mercê e Figueira Velha. Quando os barcos apitavam, sabiam assim que tinham de avançar.
A educação já não é como antigamente. Dantes, quando os filhos se iam deitar, beijavam as mãos do pai e pediam-lhe a bênção, dizendo: deite-me a sua bênção. A este pedido, respondia: Deus te abençoe, meu filho. Ao levantar, os filhos saudavam os pais, dizendo: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. E o pai respondia: Para sempre seja louvado. A saudação era a mesma quando os vizinhos se encontravam. Depois, é que entrou o costume de dizer bom dia, boa tarde e boa noite.

Na origem do rancho de Anreade
Conheço quase todas as pessoas da freguesia. Quando morria alguém, era quase sempre um dos rogadores. Também era um dos que recebia a côngrua, dada em géneros. Acartei muitas sacas de cereais e muitos cântaros de vinho para os padres. Nalgumas ocasiões até se chegavam a estragar.
Fiz parte da Comissão de Melhoramentos e de muitas comissões de festas do padroeiro. Sempre gostei de ser útil. Por exemplo, tenho vários estojos para dar injecções a pessoas e animais. Tanto posso dar na coxa, na barriga ou nos braços, dependendo do fim a que se destinam. E já dei injecções a cavalos, vacas, cães e gatos. Ainda há pouco tempo, uma senhora veio pedir-me para dar uma injecção numa gata para não emprenhar mais. Talvez seja por isso que me chamam o senhor doutor.
Sempre gostei de ir às festas que se faziam por aqui nas tascas. Bastava uma concertina e uma viola. E como não gosto de estar parado, um dia, sugeri ao Sr. Padre Adelino a criação de um rancho. Achou boa ideia, mas foi dizendo: olha que isso vai dar-te muito trabalho. Isto aconteceu no início dos anos oitenta.
Os ensaios decorriam no salão paroquial, então sem portas e só com uma placa. Arranjei um cantador e uma cantadeira e vários tocadores de instrumentos, conseguindo formar cerca de quinze pares. O reportório começou por incluir cantigas que se tocavam nos bailes, como o malhão e a chula. E era eu quem ensaiava. Já tinha a experiência adquirida nos cortejos das oferendas que em tempos se faziam para ajudar as obras da paróquia e para o então hospital de Resende. Nunca calculei que aparecesse tanta gente. A preocupação de alguns rapazes era estar de olho nas respectivas namoradas.
Como isto foi crescendo, pedi ajuda ao então Presidente da Junta, José Pinto, e ao Prof. Gabriel, Presidente da Comissão de Melhoramentos, que orientou o trabalho de pesquisa das tradições, do vestuário que antigamente se usava e de peças de trabalho, tendo-nos acompanhado desde o rio até à serra de Montemuro. Isto permitiu que o rancho se viesse a filiar na Federação Portuguesa do Folclore Português.
Continuo a pertencer ao rancho e a tocar castanholas. Também toco bombo e reco-reco. Esta ligação às castanholas nasceu de uma vinda de um rancho espanhol a Resende. Fiquei boquiaberto com o ritmo que as castanholas davam à dança.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Fevereiro de 2010
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