segunda-feira, 17 de maio de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… NA PANCHORRA: Chamo-me Serafim Pinto e nasci na Talhada há 82 anos*

Dados familiares
Antigamente, aqui na Talhada morava muita gente e era uma alegria. Havia 35 fogos com uma média de 8 pessoas por família, o que dava cerca de 280 pessoas. Hoje, só cá vivem 39. Os meus pais tiveram 5 filhos (3 raparigas e 2 rapazes) e já cá só ando eu e uma irmã.
O meu irmão morreu há 60 anos. Tinha ido à inspecção em Maio, vindo a falecer logo a seguir, em Outubro, com uma febre muito alta. Na mesma altura e da mesma doença, morreram aqui na aldeia 6 rapazes, todos com cerca de 20 anos, e 1 menina de poucos meses. Todos tinham muita sede e frequentemente arrebentava-se-lhes muito sangue no nariz. Ia-se muito pouco ao médico. Não havia dinheiro, era uma miséria. Ainda por cima, tinha de se lhe mandar um cavalo para subir a serra. Ainda me lembro de ter cá vindo um doutor e o conselho que deu foi dizer para dar água quente aos doentes, depois de fervida, o que lhes custava muito a beber. Foi uma espécie de gripe A, com a sorte de hoje haver injecções e medicamentos.
Uma das minhas irmãs morreu com mais quatro pessoas há 28 anos, num acidente em Santa Comba Dão. Vinham de Lisboa numa carrinha que se despistou, tendo ido embater numa coluna de pedra. A outra minha irmã morreu há cerca de um ano. Andava a fazer hemodiálise.
Tenho 8 filhos, felizmente todos vivos. Cinco deles, casados, vivem em Lisboa. Moro na companhia de um filho e de uma filha, ambos solteiros. Por cá, ficou também outra filha, que se encontra casada. Ainda tive mais dois filhos, um deles já vinha morto e outro veio a morrer poucos dias depois de nascer. Todos tinham muitos filhos. Eram aqueles que Deus queria e cá se criavam. Infelizmente, a minha mulher faleceu há quatro anos.

Frequência da escola na Panchorra
Durante 5 anos, frequentei a escola na Panchorra, tendo feito o exame da 3.ª classe. Saí de lá bem preparado, a ler e a escrever como deve ser. As aulas começaram por ser dadas numa casa alugada de colmo sem muitas condições. Depois mudámo-nos para a residência do padre, que nunca lá viveu.
Tive como professora a mãe do Dr. Hamilton, falecido há pouco tempo. Nos primeiros anos, a escola era só frequentada por moços. As raparigas eram mais precisas para fazer a lide da casa e os pais tinham receio de alguns matulões. Nos dois últimos anos, já andei com três ou quatro raparigas.
Gostei de lá andar. Em dias de muito inverno, ficávamos em casa ao lume. A professora não batia muito. Quando o fazia, era com uma vara. Só me lembro de ter apanhado uma vez. Estava ao lado do Zé Tareco na brincadeira, por ele não conseguir pronunciar o l de lobos. Pronunciava lhobos, o que me dava uma grande vontade de rir e a professora não esteve para brincadeiras.

Trabalhando como criado
Após a saída da escola, com 12 anos, fui servir para casa do Contador de Forjães, substituindo um rapaz (o tio Manuel Glória, da Talhada). O meu trabalho era tratar de um cavalo, ir diariamente (menos aos domingos) buscar leite a S. Martinho de Mouros e ir esperar à tardinha, com o cavalo, um dos filhos à vila, que lá tinha uma loja de ferragens (de manhã, na descida, ia a pé). O Contador era muito rico. Era dono de três quintas (em S. João de Fontoura, Forjães e perto do Arco). Só podia comer depois dos patrões, na cozinha, juntamente com as duas criadas. Estive lá a servir dois anos. Um dia pelo Natal vim cá passar, na Talhada, um fim de semana. Na volta para Forjães, numa segunda-feira, acompanhei a D. Piedade, natural daqui, responsável da Casa de S. José, da Quinta do Bairro, onde ia à missa, que me disse várias vezes para ter calma e ir mais devagar, que o mundo não iria acabar. Sabendo do atraso, o patrão ao ver-me, disse: Se estivesse aqui, viravas a cara para onde tinhas o rabo. Fiquei a cismar nestas palavras. Queria ele dizer que teria dado meia volta, indo para casa. Pensei: nem é cedo, nem é tarde. Juntei a roupa e pedi para fazer as contas. Ainda me disse: És um badamerda; vais embora por uma coisa de nada… Comecei a ganhar vinte e sete escudos por mês, tendo subido depois para trinta escudos. As criadas nunca me mudaram a roupa da cama. Vim de lá com muitos piolhos. A minha mãe recebeu-me bem, dizendo: Nesta casa, ainda há uma malga de caldo a mais para te dar.
A seguir, fui servir para a casa dos fidalgos do Fornelo, em Paus, onde estive uma semana. Lembro-me de lá haver 11 cães. Fui para lá só com a roupa que tinha vestido para tratar de um cavalo. Diariamente, tinha de ir lá em baixo às ínsuas buscar um carrego de erva, ficando com a camisa toda molhada, que secava no lombo. Quando, no fim de semana, a minha mãe viu o estado da camisa e lhe contei o que se passava, disse: Não é precisa qualquer muda de roupa; já não vais mais para lá.
Depois, fui servir para a Panchorra, para casa do regedor, onde estive dois anos. Dormia no quarto com o filho. O meu trabalho era sobretudo guardar o gado.

Rumo à independência
Entretanto, o meu pai foi trabalhar para Lisboa, vindo cá um mês por ano. Vi que a minha mãe precisava de mim. Coitada, fazia com as minhas irmãs umas territas a meias. Consegui arranjar uma vaca, comprada por um negociante de gado, com rendimentos a meias. Depois, pedi para tomar conta de uma toira. Assim, já as podia jungir para trabalhar.
Seguidamente, tive de ir à tropa, tendo estado em Torres Novas e Entroncamento dezassete meses. Tirei a especialidade de condutor. Tinha um carro de combate atribuído. Não troquei a carta de condução militar, pois para tal precisava de trezentos escudos, que não tínhamos. Depois passou o prazo. E fiquei sempre sem carta.
Regressado da tropa, continuei a trabalhar as terras e a guardar gado na Talhada. Aos 27 anos, altura em que me casei, a minha vida deu uma volta, para melhor. A minha mulher, por morte da mãe, já tinha herdado alguns bens (os meus sogros tinham caseiro). Eram seis irmãos, tendo tocado a cada um deles uma junta de vacas. Em tempos, cheguei a criar seis vacas, um cavalo, um jumento e várias ovelhas. Actualmente, ainda tenho uma vaca, um carneiro e duas ovelhas.

Inter-ajuda e especificidades da aldeia
A maioria das pessoas vivia com dificuldades. Nem para comprar sardinhas salgadas havia dinheiro. Aparecia por cá um senhor de Boassas a vendê-las num jumento, mas os fregueses eram poucos. Apesar de tudo, não é da minha lembrança conhecer gente da Talhada a pedir. Quando se sabia que havia pessoas que passavam mal, procurávamos ser uns para os outros. Exceptuando quatro ou cinco famílias, todas matavam um porco, mas a carne não durava sempre. Havia anos em que a geada queimava tudo. Muitas vezes, ao pequeno-almoço, comia-se uma malga de caldo, ao almoço batatas cozidas com feijão e sopa e ao jantar caldo e pão. Todas as famílias coziam pão, de acordo com as suas posses. Ainda há três moinhos a funcionar. Hoje em dia, o pão que como continua a ser cozido lá em casa.
As famílias eram auto-suficientes e faziam tudo: cobertores de lã, mantas de panos, camisolas, camisas e vestidos de linho, capuchas em burel, meias, croças, capelos, socos e chapéus de palha. Comprava-se muito pouca coisa, tudo fiado, normalmente numa venda da Gralheira, sendo o pagamento anual. Os homens compravam, quando muito, um fato pelo casamento, que servia também para o seu enterro.
As moças da ceifa, que iam para a apanha da castanha, eram uma ajuda para as famílias. Traziam quarenta quilos de castanha, que eram o nosso alimento durante o inverno. Uma das minhas irmãs foi durante vários anos para as Quintãs de Paus. Ainda me lembro de lá ir buscar vários carregos.
As famílias juntavam-se para cozinhar o pão, escarpiar a lã e tascar o linho. Muitas vezes, enquanto as mulheres fiavam a lã ou faziam meias e camisolas, os homens jogavam à bisca de seis. Ninguém sabia o que era jogar à sueca. Em Julho, colmávamos as casas, cuja cobertura durava cerca de dez anos. O colmo não deixava entrar o frio no inverno nem o calor no verão. Só as duas capelas estavam cobertas de telha. Os vizinhos ajudavam-se, por troca, nas vessadas, segas e malhas. Havia seis ou sete eiras na aldeia. As malhas podiam ser feitas por eirada, em que os molhos do centeio eram espalhados por toda a eira, sendo percorrida por malhadores, e por mascoto, em que a malha era feita com duas fieiras de molhos voltados ao centro contra as espigas, estando os malhadores frente a frente.
Na Talhada e Panchorra, ao contrário de outras aldeias da serra, nunca houve o costume do gado ser guardado por “ vigias”, que se iam revezando e em que todos os animais saíam juntos num grande rebanho. Aqui cada um sempre tomou conta do seu gado. Sempre houve e há muito pasto, já que se podia e pode ir para todos os terrenos desde que não estejam vedados com calços.

Nostalgias
Conheço muito bem a Panchorra e a Talhada, até porque fui secretário da Junta de Freguesia antes e depois do 25 de Abril. Naquela altura, vieram ordens para demitir o pessoal das Juntas e Câmaras. Mas poucos dias depois vieram cá uns tipos da Câmara de Resende a pedir para ficar na Comissão Administrativa da Junta de Freguesia. Disse-lhes que, se não servia antes, também não servia para depois. Porém, tanto insistiram que tive de aceitar. E fui ficando, só tendo saído há oito anos.
As pessoas ajudavam-se mais. Estavam mais atentas às necessidades dos outros. Os mais novos recebiam de boamente os conselhos dos pais e havia muito respeito pelos mais velhos. Agora, todos têm a mania que já nasceram ensinados. Os jovens beijam-se muito, mas isso não é amor. São como as raposas novas que estão sempre a brincar boca com boca. E olhe que foi assim que matei uma.
Não havia prendas de Natal, mas havia muita alegria. A consoada, com batatas, tronchas e bacalhau, era um manjar. Enquanto esperávamos, jogávamos ao par e pernão com figos, pinhões e confeitos.
Gostava de ver mais gente nova por aqui. Tenho pena que não nasçam mais crianças.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Janeiro de 2010
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