quinta-feira, 3 de junho de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA...EM FELGUEIRAS: Chamo-me Ilídio de Almeida e nasci em Felgueiras há 64 anos

Salto na vida

Uma das coisas que ainda me dói foi ter de deixar a escola no fim da 3.ª classe para ir servir. Era um dos melhores alunos. Fui guardar gado, continuando o filho do patrão, de quem era colega, a frequentar a 4.ª classe. Só da minha idade havia treze rapazes. Fomos todos no mesmo dia à inspecção. Muitas vezes, ao longo da vida, me perguntei, com alguma revolta, por me achar injustiçado face ao filho do patrão: por que razão teria de ser eu a guardar o gado que não era meu ? É a vida de pobre. Foi a necessidade. Mais tarde, fiz a 4.ª classe em Vila Paiva de Andrade, Moçambique, e o 6.º ano aqui, em Felgueiras, na Escola Primária, onde tive três professores. Na altura, eram necessários, no mínimo, dez alunos para constituir uma turma. A minha esposa também fez o 6.º ano.

Sente-se e aconchegue o estômago. Pode comer este salpicão e estas moiras, pois são de confiança. Os porcos são cevados aqui em casa, à moda antiga, e sou eu quem os mata. Como aprendi? Fui vendo como e em que sítio se espetava a faca. Os cordeiros também sou eu quem os mata. Também me ajeito a fazer outras coisas. Por exemplo, sou capaz de fazer cestas. Estas fui eu que as fiz, mas não ponha lá isso, senão ainda se põem p’ra aí a pedir para que as faça para fora.

Nasci sem nada. Hoje, tenho uma razoável vivenda e alguns terrenos. Mato anualmente dois porcos e um ou dois anhos. E sobretudo eduquei duas filhas. Uma tirou o curso de engenharia de madeiras e vive em Cinfães; a outra tirou o curso de história e dá aulas no Externato de Resende. Orgulho-me dos três netos. Nunca pensei chegar até aqui.

Até à tropa, em Angola

Sou filho de pai incógnito, embora ninguém faça segredo de quem é realmente o meu pai. E o senhor é até capaz de desconfiar quem seja. A minha mãe casou-se tinha eu 11 anos, até me lembro do mês; foi em Fevereiro. Até aí, trabalhou no campo a dias e foi acarretadeira, transportando mercearias de Resende para aqui, para a venda de Albertino Ferrão, que era o meu padrinho de baptismo.

Após a saída forçada da escola, fui servir para vários patrões. Lá comia e dormia, recebendo uns trocos. Com 15 anos, fui trabalhar como contínuo no Colégio S. Pedro, em Coimbra, por pedido do Padre Albino Matos. Mas só lá estive três meses. Atribuíram-me funções para as quais não tinha habilitações. Ainda me lembro bem da Rua Alexandre Herculano, da Praça da República, das Escadas Monumentais…Mas tive de regressar ao trabalho com o mesmo patrão, o Sr. Alexandre Borges, onde ganhava 150 escudos por mês.

Com 17 anos, tentei a minha sorte em Lisboa, onde comecei por trabalhar para um depósito de madeiras, onde fazia a selecção e ajudava a carregar camiões. Ficava na Rua Vale Formoso de Cima e ganhava 20 escudos por dia. Aqui estive pouco tempo, pois consegui transitar para um trabalho de comércio de ferro velho, onde estive três anos, até ir para a tropa. Ficava na zona do Poço do Bispo, junto à doca, começando por ganhar vinte e dois escudos e cinquenta centavos por dia. Vivia numa barraca com um vizinho, no Bairro Chinês.

Fui à inspecção na Câmara Municipal de Resende, assentei praça no Regimento 14, em Viseu, e tirei a especialidade de armas pesadas, em Abrantes. Pouco depois, fui mobilizado para Angola. Parti de Portugal em 4 de Janeiro de 1968, com destino a Vila de Tamboco, a 100km de Ambrizete, no Norte de Angola. Estive nessa zona durante 11 meses, tendo prestado serviço em várias localidades, onde morreram nove camaradas do meu batalhão. Depois fui para uma zona menos perigosa, a cidade de Malange, onde permaneci até ao meu regresso a Portugal, o que aconteceu em 14 de Março de 1970.

Casamento

Depois de cumprida a tropa, regressei a Felgueiras, onde estive a abrir valetas na estrada de terra batida, que cá tinha chegado em 1963. Aguentei este trabalho por conta da Câmara Municipal, durante dois meses. Em seguida, fui tentar outra vez a sorte em Lisboa. Depois de me acolher em casa de um vizinho, fui viver para uma barraca no Pátio do Colégio, em Marvila, tendo arranjado trabalho, em Junho, numa empresa de transportes ao domicílio, chamada Freitas e Araújo, situada na Rua do Açúcar.

No ano seguinte, com a namorada longe, em Felgueiras, resolvemos casar, o que aconteceu em 4 de Setembro de 1971. Fomos viver para a tal barraca, mas não por muito tempo. Em Dezembro, despedi-me para me aventurar num novo rumo de vida.

Por terras de Moçambique

Sempre tive vontade de sair da cepa torta. Para o efeito, fui desafiado pelo meu padrinho, Albertino Ferrão, então comerciante em Moçambique, para ir trabalhar com ele. Aceitei. Saímos de Lisboa, no fim da noite de 31 de Dezembro de 1971, tendo aterrado, na cidade da Beira, em dia de Ano Novo. Daí fomos para Canda, localidade da Gorongosa, onde estavam instaladas quatro casas comerciais, duas das quais pertença do meu padrinho, em sociedade com um seu cunhado. Durante dois anos e meio, fui empregado comercial. Ainda tive tempo para tirar a carta de condução de pesados na Beira, tendo estado hospedado na Pensão Marques. Em Novembro de 1973, nasceu a minha filha mais velha.

Já depois de 25 de Abril, em Junho de 1974, por falta de condições, sobretudo de segurança, mudámo-nos para a cidade da Beira, para a pensão que já conhecia e onde vim a trabalhar, assim como a minha mulher. O casal proprietário, que actualmente vive em Braga, gostava muito de nós, tendo-me confiado a responsabilidade pelo funcionamento da pensão. Essa amizade continua, visitando-nos amiúde.

Até à saída da tropa portuguesa, a afluência da pensão era muita. Depois as coisas começaram a complicar-se. Ainda me lembro de uma cena de provocação de dois soldados da FRELIMO a um velhote branco, com frases do género “passaste a vida a explorar os pretos”, “vai para a tua terra”, que me estavam a fazer espécie. Então virei-me para eles e disse-lhes: “camaradas, deixem o velhote em paz”. Furiosos, viraram-se para mim, a berrar: “o poder é do povo; estás proibido de abrir a boca, reaccionário”.

Abandonei Moçambique em 25 Janeiro de 1976 sem nada, pobre como parti. Não adquiri bens. Mas se os tivesse, de nada valia, pois foi tudo nacionalizado. Até as casas funerárias passaram para o controle do Estado. E quanto a dinheiro, nada feito; teve de lá ficar. No embarque, só autorizavam a cambiar 500 escudos. Uma miséria.

Refazendo a vida

Voltei de mãos a abanar para Felgueiras, tendo ido trabalhar para as obras com o Sr. Abílio. Passado quase um ano, abriram quatro vagas para cantoneiro municipal, em 16 de Dezembro, e não deixei perder esta oportunidade. Fui um dos seleccionados. Durante 22 anos, tive a responsabilidade do troço da estrada Felgueiras/S. Cristóvão, que só veio a ser asfaltada vários anos mais tarde. Não imagina o frio e o calor que apanhei por aí acima. Não havia sítio onde nos acolher. Com a chuva e neve, foram muitos os carros, especialmente táxis, que ajudei a desempenar. Pergunte ao Sr. Inácio dos táxis como eram aqueles tempos. Os carros de praça tinham de se fazer serra acima para ir levar doentes ao médico. Há uma data que não esqueço neste período: o nascimento da minha filha mais nova, em Março de 1978.

Depois deixei o serviço na estrada e vim para a vila, onde cumpri outras tarefas na Câmara, durante 8 anos, fazendo um pouco de tudo: pedreiro, carpinteiro, jardineiro e porta-miras. Foi um trabalho muito diferente, para melhor, relativamente ao trabalho de limpeza e manutenção de estradas.

Na reforma

Estou reformado desde 2006. Cheguei a trabalhar com três presidentes de Câmara: Sr. Couto, Dr. Brito de Matos e Eng. António Borges. Não entrei por cunhas, o que foi bom. Sempre me dei bem com o Dr. Brito de Matos, mas tenho de reconhecer que o Eng. António Borges fez todos os possíveis, em relação a mim e a outros, para que progredíssemos e beneficiássemos de uma reforma maior. Nunca tive problemas com ninguém. Sempre fiz o que me mandaram e respeitei toda a gente

Vou aqui ao café e, de vez em quando, à vila. Gosto de ir às feiras. Ainda no ano passado fui à feira de S. Cristóvão, onde reconheci o Padre Fausto, que me casou e que entretanto deixou de ser padre. Nunca mais o tinha visto. Gosto de me entreter por casa e nos terrenos, onde crio animais e tiro vinho, batatas, feijão… para as despesas.

A freguesia de Felgueiras sofreu grandes alterações. Antigamente, havia aqui alguns patrões, que viviam dos terrenos. Os mais fortes eram os chamados Brasileiros (os Duartes). Enriqueceram no Brasil e depois voltaram para cá. Ainda conheci dois deles, que nunca chegaram a casar. Ainda me recordo da existência de alguns rebanhos. A maioria das pessoas vivia do trabalho duro da terra, que não chegava para dar de comer aos filhos. A alternativa era pôr as despesas no rol, que se pagavam com as vindimas e podas no Douro e as vendas de gado, pelo S. Miguel.

Sinto-me satisfeito por ter chegado onde cheguei. Reconheço que as pessoas que por cá ficaram não se podem queixar. Vivem muito melhor. Não há comparação.

*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Março de 2010

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