segunda-feira, 19 de julho de 2010

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM CÁRQUERE: Chamo-me Manuel Augusto Alves, mais conhecido por Manuel Guerra, e nasci em Cárquere há 70 anos*

História familiar
Tal como o meu pai, nasci aqui na aldeia de Pedreira em 1 de Dezembro de 1939. A minha mãe morreu em 1997 com 87 anos. O meu pai morreu mais novo, tinha ele 77 anos. Embora tivessem uma casa e umas terrinhas, foram sempre caseiros. O meu pai, quando podia, dava uns dias fora. Éramos cinco irmãos: três rapazes e duas raparigas. Um, infelizmente já morreu; suicidou-se há cerca de um ano.
Os meus irmãos saíram daqui para Lisboa quando tinham cerca de 15 anos. Já lá vivia um cunhado que os chamou e orientou. Os dois rapazes aprenderam a arte e tornaram-se carpinteiros.

Percurso pessoal
Foi já tarde quando comecei a ir às aulas. Inaugurei a escola de Passos. A Professora Odete, mulher do Dr. Brito de Matos, que foi Presidente da Câmara, foi quem me ensinou. Entrei com 10 anos, porque não havia escola na zona. Da primeira classe passei para a terceira. Não cheguei a conhecer o livro da segunda. Na terceira classe adoeci e tive de a repetir. Saía de manhã e voltava por volta das 5 horas da tarde. Vinha comer a casa. Embora aprendesse bem, não gostava de andar na escola. O meu pai é que me ameaçou em caso de desistência: se não vais à escola, irás trabalhar comigo no duro. Um dia, andava o meu pai a fazer um calço e tive de ir ajudá-lo. Estávamos a partir uma pedra; o meu pai segurava no pistolo e eu carregava na maceta. Às tantas, enganei-me e acertei na mão do meu pai. Sei que ele se enfureceu e ia para me dar uma coça, mas fugi. Foi remédio santo. A partir daí, comecei outra vez a frequentar a escola. Fui explicar a situação à Professora Odete, que me recebeu de braços abertos. Ainda me lembro bem de ter ido fazer o exame da quarta classe a Resende. Ia bem preparado. Naquele tempo, sabia-se a história toda e a geografia completa. As linhas do caminho de ferro, serras, rios e afluentes andavam na ponta da língua, não falhava nada. Agora há menos exigência.
Até aos 10 anos, antes de ir para a escola, guardei duas vacas e ajudei o meu pai nos campos.
Depois de fazer a 4.ª classe, pedi a um cunhado meu, que vivia em Lisboa, para lá me arranjar trabalho. Fui para uma oficina de serralharia, mas ganhava pouco. Preferi ir trabalhar nas obras onde andei até ir para a tropa.

Militar em Goa
Fui à inspecção em Resende, tinha eu 19 anos. Com 20 anos fui para o quartel de Caldas da Rainha, onde fiz a recruta e a especialidade de armas pesadas. Entretanto, fui mobilizado para a Índia. Saí daqui a 3 de Março de 1961, no barco “Niassa”, tendo desembarcado lá a 27 de Março. Fui pelo Egipto, Canal do Suez, porto de Áden, costa este de África e aportámos finalmente em Mormugão. Comia-se bem. Tenho as melhores recordações da viagem. Fomos para uma localidade chamada Alparqueiros render uma companhia.
Os dias iam correndo de feição. Goa era uma cidade muito bonita e desenvolvida. Ficava admirado com a imponência de casas senhoriais e de igrejas. A população, muito simpática, falava português e parecia muito instruída. Aquilo tudo punha a nossa terra num chinelo.
A certa altura, fomos informados que ia ocorrer uma invasão. Sabíamos que a Rússia estava a armar a União Indiana com navios de guerra e aviões. Criou-se um ambiente tenso, pois assistíamos, junto à fronteira, à invasão de centenas de indianos desarmados. Preparámo-nos para o pior escavando abrigos durante dois meses.

Invasão pela União Indiana
Na madrugada do dia 18 de Dezembro de 1961, aviões da União Indiana arremessaram centenas de mensagens, avisando: ou se rendem ou bombardearemos tudo. Nesse dia estava num abrigo com o municiador da metralhadora pesada e um ajudante. Eram cerca de 30.000 soldados indianos contra 3.500, se contarmos com a polícia e guarda fiscal. A invasão foi feita por terra, mar e ar. Uma granada quase nos ia apanhando. Por isso, tivemos de ir fugindo com a metralhadora até ao mar. Totalmente cercados, os soldados indianos gritavam exigindo a nossa rendição, caso contrário seríamos todos mortos. Contudo, havia ordens do governador e chefe das forças armadas para continuar a combater. Os oficiais de patente mais baixa eram de opinião que nos devíamos render para evitar a mortandade geral. Às 3 horas da manhã do dia 19, fui atingido com uma bala no capacete. O alferes tirou-me o capacete e disse: este já foi desta p’ra melhor. Felizmente, a bala foi desviada. Vi ainda morrer alguns. A ordem de rendição do Governador e Chefe das Forças Armadas Vassalo e Silva chegou ao princípio da tarde desse dia 19.

Cativeiro
Na altura da rendição, tinha comigo uma pistola e um sabre. Como castigo, estive algemado com as mãos atrás das costas, durante três dias, juntamente com cinco colegas, encontrados na mesma situação. Realmente, devia ter abandonado as armas para não os enfurecer.
Fomos levados para um campo, vedado com arame farpado. Estavam à volta de 1.500 prisioneiros. Semelhante a este, havia mais dois campos. Fiquei aqui 5 meses em condições muito duras. As refeições eram pão e água. As necessidades eram feitas numa cabine improvisada, sem papel higiénico nem água. Muitas vezes, limpei-me a uma pedra. Só sei que antes da prisão pesava 75 quilos e quando cheguei a casa pesava 49.
Arrebentou-se-me o corpo todo. Nasceram umas bolhas, formando chagas. Pensei que ia morrer. Um alferes deles que falava português disse-me: tens de ir para o hospital. Mas um nosso graduado, o alferes Mota, disse-me: tu não vais nada para o hospital que nós estamos prestes a sair daqui. No campo podíamos ouvir rádio. A certa altura, correu a notícia de que a nossa libertação estaria eminente e havia conversações com diversos países, nomeadamente com a França.

Libertação
E esse dia chegou finalmente. Foi a 5 de Maio de 1962. Fomos em aviões franceses até Karachi, no Paquistão. Lá estavam à nossa espera três barcos, vindos de Portugal (“Pátria”, “Moçambique” e “Vera Cruz”). Também nos esperavam alguns médicos. Fui logo atendido por uma médica, que me desinfectou e pôs alguns pensos. Tinha de me embrulhar num lençol por causa das dores e facilitar a recuperação. Ela animou-me, dizendo que brevemente estaria bom.
No princípio, não tinha apetite e custava-me muito engolir. Fui comendo aos poucos. E as chagas lá foram sarando e desaparecendo aos poucos.
Cheguei a Lisboa a 23 de Maio. O meu cunhado foi-se despedir à partida, mas não teve coragem para estar presente à chegada. Seguimos para o quartel de Caldas da Rainha para receber a guia de marcha para a “peluda”, terminando finalmente a viagem em Cárquere.
Depois da invasão, durante algumas semanas, não chegou nenhuma correspondência à família. E mesmo os aerogramas, que tinha escrito um pouco antes, arderam. Com a falta de notícias, a minha mãe chegou a desmaiar. Na prisão autorizavam que escrevesse, mas não podia dizer mal da situação que aí se vivia. Havia censura.
Nos primeiros tempos, andei muito perturbado. Ainda me recordo que na primeira festa de Santa Maria de Cárquere, que aqui passei, ao ouvir fogo, deitei-me logo para o chão. E fiquei desvairado. Pensei que eram os indianos a atacar. Acontecia-me o mesmo sempre que ouvia fogo nas festas. Depois lá foi passando.

Nova vida em Cárquere
Comecei a trabalhar como trolha, tendo casado quando tinha eu 24 anos. O namoro começou antes da tropa. A minha futura mulher ainda pensou que ficava sem namorado, mas teve-me de volta. Ainda lhe escrevi muitos aerogramas de Goa.
Vim para a casa onde ainda hoje moro, que era dos meus pais, sendo obrigado a pagar-lhes duzentos escudos de renda por ano. Depois comecei a fazer-lhe as terras a meias, continuando a ganhar o dia como trolha ou nas terras.
Nasceram três filhos, mas um morreu com 25 meses e outro veio já morto. Vingou a minha filha, que aqui ficou e casou. Não tenho netos.
Já tive duas tromboses. A primeira teve lugar em 29 de Dezembro de 1997. Fui internado no hospital de Vila Real. No mesmo dia em que tive alta, morreu a minha mãe. Cheguei aqui à noite; às 3 horas da manhã, morreu. Tive um segundo ataque em 2005. Dessa vez, fui internado no hospital de Viseu. Estou a tomar 21 comprimidos por dia, para tensão, diabetes, colesterol…Só mais de 100 euros são para a farmácia. E a minha mulher, que ainda vai trabalhando, só recebe de reforma 83 euros. A nossa filha também nos vai ajudando.
Continuo a ser conhecido por Manuel Guerra. Se chegar aqui e perguntar por Manuel Alves, as pessoas pensam duas vezes. Se disser que quer falar com Manuel Guerra, toda a gente conhece. Esta alcunha vem do meu pai e a história conta-se assim. Na altura, pelos Reis, gente da mesma casa aparecia a pedir três vezes. De manhã, eram as mães; à tarde, os filhos e à noite, os pais. O meu tinha casado há pouco tempo e, naquela altura, a vida estava muito difícil. O meu pai não estava muito receptivo. Então uma mulher disse: ó homem dê lá qualquer coisinha que vem lá uma guerra e não fica cá ninguém. E o meu pai respondeu: oiça lá, mesmo que morra metade nessa guerra que aí vem, ainda cá fica muita gente. A partir daí, ficou conhecido por Guerra. No princípio, para o meu pai era um nome manhoso. Quanto a mim, sempre o aceitei bem e é um nome de respeito.
Custa-me a dormir. Tenho muitas dores. Durmo uma hora, acordo e depois durmo outra vez. De dia, vou-me distraindo com os vizinhos. Aos cafés escuso de ir, porque não posso beber. Mesmo assim gosto de cá andar. Tomara eu viver mais uns aninhos.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Junho de 2010
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