quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Pedro Namora falou ao "Jornal de Resende": "Trago sempre Resende no coração"*

Ligações familiares a Resende

Tornou-se uma figura mediática com o despoletar do chamado escândalo da Casa Pia. Recordamos as suas aparições na televisão e a sua determinação na defesa das vítimas de abuso sexual. Pela sua vivência na instituição e pelos contactos e testemunhos que foi recolhendo junto destas crianças e jovens, foi-se persuadindo de que os mesmos não mentem. Para dar ainda mais ênfase e consistência a esta convicção publicou em 2005, com a chancela da Bertrand, o livro “ A dor das crianças não mente”, estando prevista para este mês a sua reedição na Alêtheia Editora. A defesa dos direitos das crianças, especialmente das abusadas, maltratadas e mais fragilizadas, transformou-se no combate da sua vida.

A sua persistência parece advir-lhe das suas raízes e dos ascendentes familiares no nosso concelho, que sempre tiveram de lutar por uma vida digna.

O Dr. Pedro Namora, embora nascido em Lisboa, está muito ligado a Resende. A sua mãe Alzira Namora, filha de Joaquim Namora e Maria do Céu Namora, nasceu em Cardoso, S. Martinho de Mouros. O seu avô era um comerciante muito conhecido e respeitado. Ainda retém com emoção a imagem de um grupo de idosos que se levantaram e tiraram o chapéu da cabeça quando referiu o seu nome aquando de uma das duas deslocações a Resende. No nosso concelho tem alguns primos dos quais destaca o Antoninho Namora e as irmãs, “pelo carinho, amizade e dedicação com que me receberam nessa terra maravilhosa”.

Questionado sobre o que representa Resende na sua vida, respondeu o seguinte:

“Por ser órfão desde muito cedo, o que sei do meu passado foi adquirido através de relatos dos feitos do meu avô, que nunca conheci. Resende é para mim uma terra mítica, que apesar de conhecer tão mal trago sempre no coração. Das duas vezes que visitei Resende fui a Cardoso, porque gosto de ver o eido, onde a minha mãe e tios foram criados, apesar da casa estar infelizmente adulterada. Aliás, se um dia tivesse possibilidades financeiras, o que é pouco provável, gostava de concretizar o sonho de reaver essa casa para que retomasse a traça original”.

Desejava muito poder reviver e passar temporadas nesse espaço, deixando-o como legado de um reportório de encontro de raízes familiares e de memórias aos seus três filhos, uma menina e dois rapazes, com 7, 10 e 13 anos, respectivamente.

Na Casa Pia de Lisboa

Pedro Namora nasceu em Lisboa em 1965. Por ser órfão de pai e pelo facto de a mãe não ter condições para o criar juntamente com a sua irmã, entrou na Casa Pia de Lisboa em 1971, com seis anos. Está grato a esta grande instituição que o educou e lhe moldou a personalidade. “A ela devo parte do que sou. Os princípios em que fomos educados e a existência de um magnífico corpo docente conferiram-me as bases para o futuro”, confidenciou-nos.

Guarda boas recordações dos onze anos de frequência. Foi ganhando consciência das vantagens da integração numa grande instituição, que foi interiorizando como uma família alargada de pertença, cuja educação era prestigiada e donde saíram muitas personalidades de relevo que se destacaram e destacam nas mais diversas áreas.

Reconhece também as desvantagens da institucionalização, como o abandono a que as crianças e jovens estavam sujeitos, a falta de carinho, a despersonalização e até “as torturas que eram infligidas por educadores sem perfil nem vocação para o desempenho das diversas tarefas, que implicam muito sentido de responsabilidade e de sensibilidade e qualidades de relacionamento”.

Confessou ter sido alvo de uma tentativa de abuso por parte de Carlos Silvino, “de que felizmente consegui escapar”, confessou. Naquele tempo, as coisas passavam-se muito em surdina. Comentava-se apenas que era necessário ter cuidado com aquele condutor e com alguns alunos, nomeadamente os que andavam sempre bem vestidos e com dinheiro e que tinham amigos estranhos, arranjados principalmente nos jardins circundantes.

A mãe, que entretanto também já faleceu, visitava-o sempre aos fins de semana e férias, indo a casa muitas vezes, ao contrário do que se passava com a generalidade dos seus colegas.

Curso de direito

Saiu da Casa Pia em 1981, com 17 anos e o diploma do 9.º ano de escolaridade. Nesse mesmo ano, após seis meses como empregado de balcão numa loja de fotografias, conseguiu entrar para a Associação Industrial de Lisboa como aprendiz de electricista, o que lhe permitiu recomeçar os estudos no ano seguinte. Com muita força de vontade, estudando à noite, completou o 12.º ano. Não satisfeito, abalançou-se a fazer o curso de Direito na Universidade Lusíada como trabalhador estudante, tendo concluído o 5.º ano sem nunca ter chumbado.

Actualmente, trabalha numa comissão de protecção de crianças e jovens e exerce advocacia, sobretudo em Lisboa, onde tem escritório.

Reacção à recente decisão do tribunal

Questionado pelo JR sobre a decisão do tribunal que condenou seis arguidos por abusarem sexualmente de menores da Casa Pia, a sua reacção foi de satisfação, porque representa o culminar de uma luta difícil com mais de oito anos. Segundo as suas palavras, “ficou provado que, ao contrário do que alguns andaram a dizer, as vítimas sempre falaram verdade e, talvez pela primeira vez em Portugal, criminosos com imenso poder foram investigados, julgados e condenados”.

De forma desassombrada, como é seu timbre, revelou que também era atingido por alguma insatisfação. Este sentimento devia-se ao facto de “tantas cadeiras terem ficado vazias durante o julgamento. E ao desrespeito que ainda persiste pela infância: se Portugal respeitasse as suas crianças, os seis arguidos deveriam aguardar os recursos em prisão preventiva”.

Palavra final

Pedro Namora teve oportunidade de contactar e conhecer muitos conterrâneos que demandaram Lisboa em busca de melhores condições de vida, numa altura em que as dificuldades eram muitas e até a fome imperava. “Assisti à forma heróica como, partindo do nada, souberam constituir família e triunfar na vida, sem nunca perderem orgulho na terra que deixaram por necessidade. Nunca conheci ninguém mais corajoso, honrado e leal”, referiu convicto.

Já mesmo na despedida, disse emocionado: “ Sinto-me orgulhoso por, tendo nascido em Lisboa, poder dizer que o sangue que me corre nas veias é de Resende”.

*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Outubro de 2010

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