sexta-feira, 18 de março de 2011

DVD e livro com música e tradições, recriadas há 40 anos para a RTP, foram apresentados em Paus*

Alguns dos protagonistas do filme, entre eles Manuel Miguel (conhecido por "Manelzinho"), exímio tocador de rabeca, e muito público (cerca de 400 pessoas) puderam rever-se e reviver memórias por ocasião da apresentação na sede do rancho de Paus, em 16 de Janeiro passado, do DVD com um programa da RTP, gravado há 40 anos em Córdova. Começaram por poder assistir a uma vessada, com mulheres de enxada na mão a desfazer torrões e a endireitar a terra lavrada por um arado, puxado por uma junta de vacas que ia sulcando o terreno, sendo o trabalho acompanhado por um canto, entoado a três vozes, a célebre “Arrula, arrula”, que tantas vezes ouvimos em tempos idos ecoar pelo vale de Paus. Seguiu-se a interpretação musical da famosa chula de Paus, hoje conhecida em todo o país, graças ao Rancho Folclórico e Etnográfico de S. Pedro de Paus que a tem dado a conhecer com tanto êxito nas suas múltiplas actuações, constituindo o seu hino de eleição e seu ex-líbris, e graças a outros grupos como a Brigada Victor Jara, que a incluiu num dos seus CD (“Por Sendas, Montes e Vales”). A chula de Paus foi ainda estrela em 2007, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, numa interpretação conjunta da Ronda dos Quatro Caminhos, Orquestra Sinfonietta de Lisboa e Coros do Alentejo. Os presentes puderam ainda ver recriações de "valsas antigas" e de bailes de terreiro com danças ao som da rabeca, da viola e da guitarra.
Previamente a cada uma das actuações, uma voz off do filme originariamente feito para a RTP, agora reposto em DVD, com transcrição para o livro que o acompanha, contextualiza histórica e sócio-culturamente as respectivas músicas e tradições.
O visionamento do DVD despertou memórias de vidas e pessoas, algumas delas já falecidas. Por isso, o burburinho entre os presentes foi uma constante, parecendo que todos tinham tomado parte no filme. O editor José Moças (da TRADISOM), que apresentou o DVD, um apaixonado pela música tradicional portuguesa, ex-funcionário judicial em Macau e presentemente aposentado, estava encantado por ver tanta gente e tanto entusiasmo. Dos três grandes tocadores de então, só pôde comparecer o Sr Manelzinho. Infelizmente o Sr. Manuel Tereso encontra-se gravemente doente e o Sr. Joaquim Sapateiro já faleceu. O Sr. Manelzinho estava muito emocionado por contemplar o jovem artista que foi (e que felizmente continua a ser). Perguntado como é que aprendeu a tocar rabeca, disse: "sozinho, de ouvido; comecei por tocar gaita de beiços e depois concertina; seguidamente, pedi ao meu pai para me comprar um violino; apurei o toque com o Aniceto Marreta". Acrescentou ter acompanhado, como tocador, muitas rogas de vindimas ao Douro.
Refira-se que o DVD e livro, apresentados em Paus, integram a reposição da colecção da filmografia de Michel Giacometti, etnomusicólogo francês que se radicou em Portugal em 1959 e que nos anos 60 percorreu todas as zonas rurais do país, chegando aos locais mais recônditos e de difícil acesso, tendo feito o levantamento e o registo de um vasto reportório musical, que sem o seu contributo estaria irremediavelmente perdido. Entre 1970 e 1974, foi responsável por um projecto inovador "Povo que Canta", exibido na RTP, constituído por uma série de programas sobre práticas musicais ditas tradicionais. As recolhas cinematográficas ocorreram entre 1970 e 1972, tendo passado na RTP entre 1971 e 1974 (o 25 de Abril levou ao abandono do projecto). A reposição da obra de Michel Giacometti, falecido há 20 anos, foi editada graças a uma parceria da editora TRADISOM, RTP e jornal Público, cujo último volume chegou às bancas com este jornal no passado dia 7 de Fevereiro.

Contacto da editora Tradisom, para os interessados na aquisição desta obra:
JOSÉ MOÇAS (DIRECTOR)
APARTADO 69 4731-909 VILA VERDE
TEL: +351.253321044TLM: +351.939177277
http://www.tradisom.com

POVO QUE CANTA: Origem do canto “Arrula, arrula” e da chula1)
Cramol, cujo nome provém, por metástase, da palavra clamor, significava “procissão de preces”. Assim “ir a um cramol” queria dizer integrar-se numa destas procissões de carácter rogatório e que se realizavam geralmente em Maio. “Cantar um cramol” ou “Cantar um clamor” eram expressões que se aplicavam
à ladainha entoada ao longo do percurso. Por extensão, “cramois” designava os coros polifónicos próprios para cantar a ladainha ou outros cantos integrados no culto.
Os “cramois” dissociaram-se pouco a pouco da sua primitiva função religiosa e passaram a ser cantados, salvo raras excepções, com letra vulgar, durante os trabalhos agrícolas. Para o programa 11 da RTP-Povo que canta-, gravado em Córdova de Paus, foi filmada uma vessada, tendo sido acompanhada do canto “Arrula, arrula”, entoado a três vozes, com origem nos referidos corais, a que o povo chamava “cramois”. No final de cada dístico ouvem-se os apupos das raparigas que picam e desfazem os torrões à enxada, sendo o final um grito de louvor aos donos.
Eis a letra, cujo simbolismo parece estar relacionado com velhos ritos de fertilidade:
“Arrula, arrula, arrula,
Arrula, arrula, amor, meu bem;
-Ai oh!
E já que os meus olhos padeçam,
Padeçam os seus também
-Ai oh!
Lindos, frescos, são cativos
Cravos no meu coração;
“Inda” que eu queira não posso
Por deguilha ter paixão”.
No mesmo programa também foi gravada a célebre chula de Paus. Vê-se o lavrador da vessada largar o arado para acompanhar com a viola o seu companheiro da rabeca, tocando ambos a chula
Esta música parece ter andado associada às vindimas do Douro, apresentando diferenças relativamente às chulas de Amarante, de Penafiel e de Ramalde ou Ramaldeira. Possivelmente foi divulgada a partir das gentes que participavam nas vindimas ou transporte do vinho. Contudo, convém referir que, ao contrário da tradicional chula rebela, cujo nome se deve aos barcos rabelos e cujas letras se inspiram no Douro e nas vindimas, a chula de Paus canta as soidades do mês de Maio, louva o amor qu’é doce e que amarga bem e despede-se de Córbeda, que não é vila nem cidade, tendo evoluído para contrastes e ritmos musicais muito peculiares, o que lhe confere uma identidade única.
1)Retirado/adaptado de Filmografia Completa de Michel Giacometti (Vol. 09: Livro+DVD)
*Notícia elaborada por Marinho Borges, publicada no Jornal de Resende, número de Fevereiro de 2011

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM S. ROMÃO: Chamo-me António de Sousa e nasci no Povo, S. Romão, há 95 anos*

Dados pessoais e familiares
Nasci no dia 9 de Abril de 1915. Penso que sou a pessoa mais velha da freguesia. Não gosto muito de ficar aqui metido em casa. Pego em mim e vou por aí pela povoação e pela estrada fora para meter conversa com alguém que apareça. É uma maneira de espairecer e de ir sabendo o que se passa.
A minha mãe morreu deveria eu ter oito ou nove anos. O meu pai morreu com sessenta e seis anos. Casou duas vezes e teve doze filhos: três do primeiro casamento e nove do segundo. No conjunto estamos seis vivos. Infelizmente, a minha mulher morreu há nove anos. Tenho três filhas e vivo aqui na minha casa com uma delas. Quanto a netos, tenho quatro.
Os meus pais sempre foram caseiros. Ainda me lembro de se entregarem de terras em Vale Verde, numa quinta do Sr. Dr. Alberto Cochofel, em Garrafola, numa outra quinta em Pereirinha e aqui, no Povo.
Não sei ler. Só sei assinar o nome. Mesmo que quisesse aprender não havia aqui escola. Quem quisesse e pudesse tinha de se deslocar à escola da Granja, em Anreade. Eu mais alguns rapazes ainda andámos a aprender com o Sr. Alberto Duarte. Era uma pessoa cheia de boa vontade que se mostrava disponível para nos ensinar. Íamos para sua casa ao fim da tarde ou à noitinha. Aprendíamos a ler com um gasómetro ou com um candeeiro a petróleo. Como recompensa dávamos-lhe qualquer coisa em géneros tirados da terra. Ainda tenho aqui em casa um livro com vários tipos de letras que aprendíamos a copiar. Infelizmente com o tempo fui esquecendo quase tudo. Não chegavam cá jornais e revistas como hoje. Quando muito, escrevia uma ou outra carta a pedido de um vizinho que tinha um familiar no Brasil e lia a resposta de volta.

Tempos de infância e juventude
Fiz a primeira comunhão quando estreou a igreja paroquial, no ano de 1921. Foi uma pessoa da freguesia, emigrante no Brasil, que mandou construir esta igreja à sua custa, entre 1919 e 1920, visto que a antiga era muito pequena e já precisava de obras. O tal emigrante veio a falecer antes de terminadas as obras, mas a esposa deslocou-se cá para assistir à inauguração. Conta-se que o tal conterrâneo pagou as viagens para o Brasil com o dinheiro da venda de um cadeado em ouro que encontrou numa leira. Como fez fortuna no Brasil e para agradecer o tal achado, resolveu construir uma igreja nova no local onde encontrou o cadeado em ouro. No livro do Sr. Padre Joaquim está lá tudo.
Não fui à tropa. Os rapazes do meu ano, de S. Romão, ficaram todos livres.
Estive com os meus pais até fazer trinta e dois anos, altura em que casei e fui viver para casa dos meus sogros. Naquela altura, tinha de ficar e cuidar dos meus irmãos, quando os meus pais estavam no campo a trabalhar. Nas outras alturas, ia para as lameiras e montes guardar o gado, normalmente composto por quatro vacas e meia dúzia de ovelhas. Também ia abrir os tanques, as poças e minas de água para regar as lameiras ou as diversas culturas da terra (cereais, batatas, ervilhas, favas…). Já fazia tudo isto antes dos dez anos.
A nossa freguesia sempre foi muito conhecida pelos alfobres de couves tronchudas. Ainda hoje isso acontece. Por isso, a partir dos doze anos, acarretei muitas couves tronchudas, repolhos e outras variedades de couves para as feiras de Resende, Cinfães e Mesão Frio, que ainda hoje tem lugar nos dias quinze e trinta de cada mês, e aqui para o lado, para a feira do Penedo, que se realiza no terceiro domingo de cada mês. É claro que acarretei também muitas sacas de cereal para o antigo celeiro de Caldas de Aregos. Também levei muita castanha para junto da estrada, onde os comerciantes as vinham buscar em camionetas.
Dias fora dava poucos. Por vezes, aparecia uma ou outra parede para levantar e pouco mais, onde ganhava três ou quatro escudos a seco. Quanto ao amanho das terras, cada um procurava tratar das suas. Não havia dinheiro para rogar gente. Nas vessadas as pessoas desenrascavam-se por troca. Ajudávamo-nos uns aos outros. Chegávamos a juntar-nos quinze a vinte pessoas. E os mais novos também tinham lugar. Faziam recados, traziam o lanche, limpavam as ervas das paredes, rapavam o corte da cava.
Quando comparo os meus tempos de mocidade com os dias de hoje, penso que a rapaziada agora nem sabe dar valor às vantagens de que beneficia. Em pequeninos puderam ir brincar e conviver para o Jardim de Infância. Andaram a aprender a ler e a escrever numa escola aqui perto, com todas as comodidades. E a seguir continuaram a estudar em escolas de Resende, com quase tudo de graça. Se há muitos que aproveitam, infelizmente há outros que andam a perder o seu tempo. Alguns dos pais, talvez por terem passado muito na vida, dão liberdade a mais aos filhos. Mas estes, se soubessem o que era a dureza do trabalho e tivessem de ajudar em casa, talvez se aplicassem mais.
Os tempos mudaram muito. Antigamente fabricava-se tudo. Além de dar aos patrões as partes a que tinham direito, ainda tínhamos de lhes dar presentes pelo Natal, Páscoa e S. Miguel, para nos mantermos nas terras. Agora está quase tudo de velho. Com estes abonos e dinheiros da Segurança Social poucos querem trabalhar.

Trabalho no Douro
O trabalho no Douro era a salvação para muita gente. Era com o dinheiro que lá se ganhava que muitos conseguiam endireitar a vida, pagando as dívidas nas vendas (mercearia e vinho). Lembro-me de trazer de lá cem escudos numa das primeiras vezes que fui às vindimas. Para poupar, a roga, composta por homens, mulheres e crianças a partir dos onze/doze anos, chegava a ir a pé até à Régua. Lá apanhava-se o comboio, se por acaso a quinta ficasse para os lados do Pinhão. Cheguei a vindimar e a carregar cestos. Guardo boas recordações desses tempos, pois havia muita alegria; do grupo fazia até parte um tocador ou dois, que animavam a viagem e os bailaricos à noite, depois do trabalho. Para muitos era uma maneira de terem sempre qualquer coisa para comer, o que não era o meu caso, pois felizmente nunca cheguei a passar fome. A comida era feita pela caseira da quinta, em grandes potes de ferro; depois, era levada em cestos de verga até ao local onde as pessoas andavam a vindimar. Ao longo de um dia de trabalho, que geralmente durava entre 10 a 16 horas, o patrão das propriedades fornecia a alimentação aos trabalhadores, desde os vindimadores (mulheres, homens de idade e crianças) aos homens que transportavam os cestos. Normalmente havia três refeições por dia: o almoço, o jantar e a ceia. Ao almoço, correspondente ao pequeno-almoço, era apenas servida uma malga de caldo, pão com uma sardinha e vinho. Os homens, que levavam as uvas com os cestos vindimos às costas, tinham direito a mais duas sardinhas ou uma tigela com batatas cozidas e uma posta de bacalhau frito. No jantar, equivalente ao nosso almoço, era servido a todos os trabalhadores o mesmo: podia variar entre arroz, batatas e frango; arroz de feijão com peixe frito; macarrão com carne de porco, entre outras coisas. Esta refeição era a mais forte para dar energia aos trabalhadores. A última refeição não era para todos; apenas os homens que iam pisar as uvas noite dentro, tinham direito à ceia, que era mais ou menos semelhante à refeição do almoço. Os outros tinham de se desenrascar com o que tinham trazido de casa, nomeadamente pão. Às vezes, algumas mulheres faziam caldo para todos com couves apanhadas na quinta. O vinho é que era sempre fornecido pelo patrão. A merenda também ficava por conta dos trabalhadores.

Senhas de racionamento
Ainda vivia com os meus pais quando Salazar impôs senhas de racionamento, no tempo da segunda guerra mundial. O açúcar, mercearias, bacalhau, sabão e azeite eram racionados. A quantidade variava de acordo com o número de filhos. Ainda me recordo de haver gente que criava abelhas de propósito para ter mel e assim substituir o açúcar. Aqui não era costume, mas ouvia dizer nas feiras que havia pessoas que usavam o mel para fazer as chamadas “sopas de cavalo cansado”. Numa tigela punha-se pão, vinho tinto e mel. Com essa “receita milagrosa “, ganhava-se força para o árduo trabalho nos campos.
Nessa altura da guerra, os lavradores só podiam ficar com uma parte do milho que produziam, sendo o excedente armazenado em silos do Estado, para que pudesse ser distribuído por todos. Os cereais do nosso concelho eram entregues no celeiro de Caldas de Aregos, sendo pagos a um preço fixo, mas muito baixo. O meu pai escondia sempre alguma produção de milho, para que não nos faltasse pão. Isto tinha de ser muito bem feito e em segredo por causa dos fiscais. Nas cidades o pão também era racionado. Mas a minha mãe cozia sempre uma fornada todas as semanas.
As senhas eram dadas por intermédio do senhor regedor, José Rema. As compras eram feitas na Casa Moreira, nas Caldas de Aregos, e na Casa Valente, em Resende. Faziam-se imensas bichas e, às vezes, esgotavam-se os produtos.
Estou convencido que muitas das pessoas da cidade, desempregadas ou com salários baixos, passaram mais fome que nos campos. Aqui, quem fabricava terras podia criar galinhas e porcos, plantar couves para o caldo, semear batatas e milho. Havia sempre qualquer coisa para encher a barriga, como acontecia em minha casa. Mas também havia pessoas por cá que não tinham terras para trabalhar; essas sofriam muito.

Vida de caseiro e reforma
Como já lhe disse, casei-me tinha trinta e dois anos. Tudo o que ganhei até então era dado aos meus pais. Depois do casamento fui viver com os meus sogros, que residiam na Costa da Formiga. Estive lá mais de quinze anos. Depois vim para o Povo, onde fui fazendo várias terras à volta e por aqui fiquei até hoje.
Foi uma vida de muito trabalho. Mas em casa nunca faltou o pão para nós e para as nossas três filhas. Não havia estradas, luz eléctrica ou telefone, novidades e benefícios que chegaram muito mais tarde. Pergunta-me se se falava de Salazar ou de política. Como é que se havia de discutir essas coisas se aqui não chegavam jornais nem havia rádios? Ainda me recordo de as minhas filhas gostarem de ouvir o rádio que o chamado Joaquinzinho punha à janela, corria então o ano de 1961. Dava também brado o rádio e as duas baterias que o Sr. José Rodrigues (que foi comandante dos bombeiros) trazia aos fins de semana de Resende num burro para uma taberna/venda de um tio, situada no lugar da Boavista.
Estou reformado há cerca de trinta anos. Mas não paro em casa. Ainda faço a poda e gosto de sair por aí para falar com as pessoas. Ainda há dias uma criança me dizia que eu era o orgulho da povoação. É isto que me faz viver.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Fevereiro de 2011.

terça-feira, 1 de março de 2011

A “falacheira” de São Brás/O dia das falachas*

Quem chegar a Resende e perguntar pela “falacheira” de Cimo de Resende, todos indicam a Maria Rosa Teixeira, ou a Dona Rosa, como é conhecida, que mora no lugar da Codiceira. É esta uma das poucas mulheres do concelho, e da região, que confecciona de modo tradicional as “falachas”, bolo “centenário” de farinha de castanha, cozidas em forno de lenha, vendidas na Festa de São Brás, em Resende.
A origem desta relíquia da gastronomia tradicional remonta à Idade Média, uma época em que a farinha de castanha substituía, em períodos de crise económica, os cereais na confecção do pão caseiro, sendo fundamental na subsistência da população rural. Hoje, são vendidas, apenas, na Festa de São Brás, celebrada anualmente no dia 2 de Fevereiro, no Cimo de Resende, o “dia das falachas”, como reza a tradição. No entanto, a inexistência de projectos e de seguidores ameaça a sua continuidade
.

A tradição vem de família. A faina da Dona Rosa começa quando os primeiros ventos frios de Outono começam a “curar” as castanhas “peladas” e “curtidas” nos caniços das lareiras, previamente colhidas nos soutos de Cimo de Resende. O ciclo acaba em Fevereiro, com a Festa de São Brás, em Resende, onde despacha as últimas falachas.
O doce é feito à base da farinha de castanhas secas no caniço, durante os rigores de Inverno, ao calor e ao fumo da lareira, e moídas no moinho alveiro, de rodízio, no lugar de Xis, em Cárquere, um processo lento, mas necessário, já que a moagem eléctrica “põe a farinha muito grossa”.
Em Dezembro e Janeiro, testam-se os primeiros exemplares, para consumo caseiro ou para venda esporádica a pessoas amigas que o solicitam. Uma semana antes da Festa de São Brás, a azáfama é diária na preparação das centenas de milhar de falachas, consoante o ano, a vender na festividade do dia 2 de Fevereiro.
A confecção não tem segredos para a “falacheira”. “À farinha da castanha adiciona-se uma pequena porção de farinha de trigo, para obter a ‘liga’, água morna e um pouco de sal e amassa-se com a mão”, explica.
Pronta a massa, é paulatinamente colocada, à colher, sobre folhas de castanheiro, lavadas e secas, previamente recolhidas nos soutos, que a doceira dispõe longitudinal e transversalmente. “A folha serve de protecção à massa para que esta não ‘agarre’ à base do forno”, diz.
Cada falacha é, então, calabreada com uma faca, sempre molhada na tigela de água fria, até obter a forma de pequena e achatada broa. “Também fazemos umas maiores, deliciosas, cobertas com salpicão, que têm muita procura”, refere a Dona Rosa.
Prontas a irem ao forno de lenha, numa pá de madeira, aí cozem durante cerca de 10 a 15 minutos, tempo suficiente para adquirirem uma coloração dourada.
O resultado são “bolinhos” redondos, de cor acastanhada e sabor adocicado, que podem consumidos quentes ou frios. Apesar de serem comidas simples, há quem prefira cortá-las às tiras e colocá-las numa frigideira com um bom azeite da região, ou banha de porco, ou polvilhar com um pouco de canela e açúcar, fazendo um doce extraordinário.
Todos os anos, no dia 2 de Fevereiro, manhã cedo, com a ajuda do marido e dos seus filhos, a Dona Rosa carrega as falachas, para a Festa de São Brás, onde as vende, as mais pequenas a 1,5 euros, e as maiores, de salpicão, a 3 euros.

Contactos:

Maria Rosa Teixeira
Codiceira – Cimo de Resende
Telefone 254 877 779

Importância económica da castanha

A castanha assumiu, no passado, grande importância económica. Foi decisiva, em Portugal, para a subsistência das populações de serra, mantendo-se intimamente ligada, pela sua utilização na dieta alimentar, à sobrevivência das gentes rurais. Como nos refere Magalhães (MAGALHÃES, T, “O Castanheiro”, Ilustração Transmontana, 1910) “quanto essa abençoada árvore se desfaz em benefícios para o homem! Quer dos seus fructos quer da sua madeira, ella distilla perenne riqueza: “pinga” sempre! (...) mas só mais tarde eu conheci que as suas “pingas”, juntas, produziam grossa chuva de oiro na minha província”.
Assadas ou cozidas, as castanhas estão intimamente ligadas à tradição gastronómica portuguesa. As falachas são disso exemplo, estando preservadas na memória oral do nosso povo: “as falachas devem ser tendidas no cu de uma velha, para serem mais saborosas” (Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”). Na nossa região, quando alguém quer dar uma estalada ou um murro a outro diz: “levas uma falacha que não te endireitas!”. Sempre valerá mais comer uma falacha que levar com uma….

Todos ao São Brás…

Ano após ano, no dia 2 de Fevereiro, a tradição repete-se. A azáfama começa manhã cedo, quando chegam as primeiras viaturas, por uma estrada de terra batida, à procura dos melhores lugares, nas redondezas da Capela de São Brás, no Cimo de Resende.
Instalados os recursos materiais e humanos, começam os preparativos para o almoço. Procura-se lenha seca, colocam-se ao lume as panelas de ferro e prepara-se a “matéria-prima”: os enchidos (chouriço e salpicão), a carne de porco (cabeçolas, orelheira, entrecosto, patas, …), salgada, como convém, e as batatas e grelos, tradição da época. Outros estendem os merendeiros, confeccionados de véspera em casa. Para ir matando a fome, parte-se o presunto e abrem-se os garrafões com o bom vinho da região.
“Todos os anos é assim”, diz José Sousa, de Cimo de Resende, que aqui reencontra, anualmente, os amigos que marcam presença, religiosamente, no dia consagrado a São Brás, protector dos males de garganta. O cenário repete-se ao longo da serra: grupos de compinchas e de forasteiros chegam do concelho e da região, embelezando com o seu colorido esta paisagem rural, a troco de fé, convívio e muita comida…
Ao meio-dia, o cheiro a assados e cozidos a pairar no ar não engana ninguém: é hora do almoço. Nota-se que o elemento feminino está em menor número. “Isto hoje é só para homens”, refere João Ferro, de Forjães. “Aqui somos nós a fazer a comida”, segreda.
Ao início da tarde, preparando um novo ataque às panelas e aos garrafões, o elemento pagão dá lugar ao religioso. É chegada a hora da missa na Capela de homenagem ao orago São Brás, a que todos assistem, devotamente.
No fim da cerimónia religiosa, compram-se as tradicionais falachas, feitas de farinha de castanha, doce típico da festividade, preparadas nos dias anteriores para esta ocasião, vendidas durante o dia pelas poucas “falacheiras” que ainda subsistem no concelho. De seguida, continua-se o repasto e o convívio e, à tardinha, para atacar o frio que se aproxima com a noite, acendem-se fogueiras e joga-se à malha e à bola.
Quando a noite cai e os caminhos se turvam aos olhares dos foliões, é altura de regressar a casa com o desejo e a certeza de que no próximo ano, no mesmo dia, tudo se repetirá de novo…
*Apontamento da autoria de Paulo Sequeira, publicado no "Jornal de Resende", número de Fevereiro de 2011
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