sexta-feira, 18 de março de 2011

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM S. ROMÃO: Chamo-me António de Sousa e nasci no Povo, S. Romão, há 95 anos*

Dados pessoais e familiares
Nasci no dia 9 de Abril de 1915. Penso que sou a pessoa mais velha da freguesia. Não gosto muito de ficar aqui metido em casa. Pego em mim e vou por aí pela povoação e pela estrada fora para meter conversa com alguém que apareça. É uma maneira de espairecer e de ir sabendo o que se passa.
A minha mãe morreu deveria eu ter oito ou nove anos. O meu pai morreu com sessenta e seis anos. Casou duas vezes e teve doze filhos: três do primeiro casamento e nove do segundo. No conjunto estamos seis vivos. Infelizmente, a minha mulher morreu há nove anos. Tenho três filhas e vivo aqui na minha casa com uma delas. Quanto a netos, tenho quatro.
Os meus pais sempre foram caseiros. Ainda me lembro de se entregarem de terras em Vale Verde, numa quinta do Sr. Dr. Alberto Cochofel, em Garrafola, numa outra quinta em Pereirinha e aqui, no Povo.
Não sei ler. Só sei assinar o nome. Mesmo que quisesse aprender não havia aqui escola. Quem quisesse e pudesse tinha de se deslocar à escola da Granja, em Anreade. Eu mais alguns rapazes ainda andámos a aprender com o Sr. Alberto Duarte. Era uma pessoa cheia de boa vontade que se mostrava disponível para nos ensinar. Íamos para sua casa ao fim da tarde ou à noitinha. Aprendíamos a ler com um gasómetro ou com um candeeiro a petróleo. Como recompensa dávamos-lhe qualquer coisa em géneros tirados da terra. Ainda tenho aqui em casa um livro com vários tipos de letras que aprendíamos a copiar. Infelizmente com o tempo fui esquecendo quase tudo. Não chegavam cá jornais e revistas como hoje. Quando muito, escrevia uma ou outra carta a pedido de um vizinho que tinha um familiar no Brasil e lia a resposta de volta.

Tempos de infância e juventude
Fiz a primeira comunhão quando estreou a igreja paroquial, no ano de 1921. Foi uma pessoa da freguesia, emigrante no Brasil, que mandou construir esta igreja à sua custa, entre 1919 e 1920, visto que a antiga era muito pequena e já precisava de obras. O tal emigrante veio a falecer antes de terminadas as obras, mas a esposa deslocou-se cá para assistir à inauguração. Conta-se que o tal conterrâneo pagou as viagens para o Brasil com o dinheiro da venda de um cadeado em ouro que encontrou numa leira. Como fez fortuna no Brasil e para agradecer o tal achado, resolveu construir uma igreja nova no local onde encontrou o cadeado em ouro. No livro do Sr. Padre Joaquim está lá tudo.
Não fui à tropa. Os rapazes do meu ano, de S. Romão, ficaram todos livres.
Estive com os meus pais até fazer trinta e dois anos, altura em que casei e fui viver para casa dos meus sogros. Naquela altura, tinha de ficar e cuidar dos meus irmãos, quando os meus pais estavam no campo a trabalhar. Nas outras alturas, ia para as lameiras e montes guardar o gado, normalmente composto por quatro vacas e meia dúzia de ovelhas. Também ia abrir os tanques, as poças e minas de água para regar as lameiras ou as diversas culturas da terra (cereais, batatas, ervilhas, favas…). Já fazia tudo isto antes dos dez anos.
A nossa freguesia sempre foi muito conhecida pelos alfobres de couves tronchudas. Ainda hoje isso acontece. Por isso, a partir dos doze anos, acarretei muitas couves tronchudas, repolhos e outras variedades de couves para as feiras de Resende, Cinfães e Mesão Frio, que ainda hoje tem lugar nos dias quinze e trinta de cada mês, e aqui para o lado, para a feira do Penedo, que se realiza no terceiro domingo de cada mês. É claro que acarretei também muitas sacas de cereal para o antigo celeiro de Caldas de Aregos. Também levei muita castanha para junto da estrada, onde os comerciantes as vinham buscar em camionetas.
Dias fora dava poucos. Por vezes, aparecia uma ou outra parede para levantar e pouco mais, onde ganhava três ou quatro escudos a seco. Quanto ao amanho das terras, cada um procurava tratar das suas. Não havia dinheiro para rogar gente. Nas vessadas as pessoas desenrascavam-se por troca. Ajudávamo-nos uns aos outros. Chegávamos a juntar-nos quinze a vinte pessoas. E os mais novos também tinham lugar. Faziam recados, traziam o lanche, limpavam as ervas das paredes, rapavam o corte da cava.
Quando comparo os meus tempos de mocidade com os dias de hoje, penso que a rapaziada agora nem sabe dar valor às vantagens de que beneficia. Em pequeninos puderam ir brincar e conviver para o Jardim de Infância. Andaram a aprender a ler e a escrever numa escola aqui perto, com todas as comodidades. E a seguir continuaram a estudar em escolas de Resende, com quase tudo de graça. Se há muitos que aproveitam, infelizmente há outros que andam a perder o seu tempo. Alguns dos pais, talvez por terem passado muito na vida, dão liberdade a mais aos filhos. Mas estes, se soubessem o que era a dureza do trabalho e tivessem de ajudar em casa, talvez se aplicassem mais.
Os tempos mudaram muito. Antigamente fabricava-se tudo. Além de dar aos patrões as partes a que tinham direito, ainda tínhamos de lhes dar presentes pelo Natal, Páscoa e S. Miguel, para nos mantermos nas terras. Agora está quase tudo de velho. Com estes abonos e dinheiros da Segurança Social poucos querem trabalhar.

Trabalho no Douro
O trabalho no Douro era a salvação para muita gente. Era com o dinheiro que lá se ganhava que muitos conseguiam endireitar a vida, pagando as dívidas nas vendas (mercearia e vinho). Lembro-me de trazer de lá cem escudos numa das primeiras vezes que fui às vindimas. Para poupar, a roga, composta por homens, mulheres e crianças a partir dos onze/doze anos, chegava a ir a pé até à Régua. Lá apanhava-se o comboio, se por acaso a quinta ficasse para os lados do Pinhão. Cheguei a vindimar e a carregar cestos. Guardo boas recordações desses tempos, pois havia muita alegria; do grupo fazia até parte um tocador ou dois, que animavam a viagem e os bailaricos à noite, depois do trabalho. Para muitos era uma maneira de terem sempre qualquer coisa para comer, o que não era o meu caso, pois felizmente nunca cheguei a passar fome. A comida era feita pela caseira da quinta, em grandes potes de ferro; depois, era levada em cestos de verga até ao local onde as pessoas andavam a vindimar. Ao longo de um dia de trabalho, que geralmente durava entre 10 a 16 horas, o patrão das propriedades fornecia a alimentação aos trabalhadores, desde os vindimadores (mulheres, homens de idade e crianças) aos homens que transportavam os cestos. Normalmente havia três refeições por dia: o almoço, o jantar e a ceia. Ao almoço, correspondente ao pequeno-almoço, era apenas servida uma malga de caldo, pão com uma sardinha e vinho. Os homens, que levavam as uvas com os cestos vindimos às costas, tinham direito a mais duas sardinhas ou uma tigela com batatas cozidas e uma posta de bacalhau frito. No jantar, equivalente ao nosso almoço, era servido a todos os trabalhadores o mesmo: podia variar entre arroz, batatas e frango; arroz de feijão com peixe frito; macarrão com carne de porco, entre outras coisas. Esta refeição era a mais forte para dar energia aos trabalhadores. A última refeição não era para todos; apenas os homens que iam pisar as uvas noite dentro, tinham direito à ceia, que era mais ou menos semelhante à refeição do almoço. Os outros tinham de se desenrascar com o que tinham trazido de casa, nomeadamente pão. Às vezes, algumas mulheres faziam caldo para todos com couves apanhadas na quinta. O vinho é que era sempre fornecido pelo patrão. A merenda também ficava por conta dos trabalhadores.

Senhas de racionamento
Ainda vivia com os meus pais quando Salazar impôs senhas de racionamento, no tempo da segunda guerra mundial. O açúcar, mercearias, bacalhau, sabão e azeite eram racionados. A quantidade variava de acordo com o número de filhos. Ainda me recordo de haver gente que criava abelhas de propósito para ter mel e assim substituir o açúcar. Aqui não era costume, mas ouvia dizer nas feiras que havia pessoas que usavam o mel para fazer as chamadas “sopas de cavalo cansado”. Numa tigela punha-se pão, vinho tinto e mel. Com essa “receita milagrosa “, ganhava-se força para o árduo trabalho nos campos.
Nessa altura da guerra, os lavradores só podiam ficar com uma parte do milho que produziam, sendo o excedente armazenado em silos do Estado, para que pudesse ser distribuído por todos. Os cereais do nosso concelho eram entregues no celeiro de Caldas de Aregos, sendo pagos a um preço fixo, mas muito baixo. O meu pai escondia sempre alguma produção de milho, para que não nos faltasse pão. Isto tinha de ser muito bem feito e em segredo por causa dos fiscais. Nas cidades o pão também era racionado. Mas a minha mãe cozia sempre uma fornada todas as semanas.
As senhas eram dadas por intermédio do senhor regedor, José Rema. As compras eram feitas na Casa Moreira, nas Caldas de Aregos, e na Casa Valente, em Resende. Faziam-se imensas bichas e, às vezes, esgotavam-se os produtos.
Estou convencido que muitas das pessoas da cidade, desempregadas ou com salários baixos, passaram mais fome que nos campos. Aqui, quem fabricava terras podia criar galinhas e porcos, plantar couves para o caldo, semear batatas e milho. Havia sempre qualquer coisa para encher a barriga, como acontecia em minha casa. Mas também havia pessoas por cá que não tinham terras para trabalhar; essas sofriam muito.

Vida de caseiro e reforma
Como já lhe disse, casei-me tinha trinta e dois anos. Tudo o que ganhei até então era dado aos meus pais. Depois do casamento fui viver com os meus sogros, que residiam na Costa da Formiga. Estive lá mais de quinze anos. Depois vim para o Povo, onde fui fazendo várias terras à volta e por aqui fiquei até hoje.
Foi uma vida de muito trabalho. Mas em casa nunca faltou o pão para nós e para as nossas três filhas. Não havia estradas, luz eléctrica ou telefone, novidades e benefícios que chegaram muito mais tarde. Pergunta-me se se falava de Salazar ou de política. Como é que se havia de discutir essas coisas se aqui não chegavam jornais nem havia rádios? Ainda me recordo de as minhas filhas gostarem de ouvir o rádio que o chamado Joaquinzinho punha à janela, corria então o ano de 1961. Dava também brado o rádio e as duas baterias que o Sr. José Rodrigues (que foi comandante dos bombeiros) trazia aos fins de semana de Resende num burro para uma taberna/venda de um tio, situada no lugar da Boavista.
Estou reformado há cerca de trinta anos. Mas não paro em casa. Ainda faço a poda e gosto de sair por aí para falar com as pessoas. Ainda há dias uma criança me dizia que eu era o orgulho da povoação. É isto que me faz viver.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Fevereiro de 2011.

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