sexta-feira, 29 de abril de 2011

Grande entrevista de António Borges ao semanário "Douro Hoje" (Edição de 27-04-2011)*

O concelho de Resende continua a mudar. No terreno estão mais de 25 milhões de euros em obras, nas áreas da educação, modernização dos espaços urbanos, requalificação e melhoria da qualidade de vida em todas as freguesias.
António Borges, presidente da Câmara abraçou este desafio há quase três mandatos, e acredita que este concelho no interior do país continua a ser uma importante peça no puzzle na construção de uma cidadania onde há igualdade de oportunidades.
Como presidente da Associação de Municípios do Vale do Douro Sul acredita que uma das solução para os problemas para a crise é a conjugação de esforços e apela para que o país saiba escolher entre o progresso e a infra estruturação de Portugal, em vez de ficarmos parados à espera que a crise passe.


Douro Hoje- Como avalia este momento político e social que o país vive?
António Borges
- Em primeiro lugar, não há outra maneira de resolver os problemas: com trabalho. Caso não se entendam as coisas de outra forma no futuro pagaremos uma fatura muito alta. Se não tivermos sustentabilidade naquilo que fazemos e se esta não resultar do nosso próprio esforço tudo se perderá. O grande problema do futuro de Resende e da região Douro, é também achar que não devemos ter ambição. O que estamos a fazer em Resende é criarmos a tradição de estarmos na linha da frente dos desafios de uma sociedade contemporânea. Eu acho que, numa altura como esta, e num concelho como este, hipotecar o futuro é não termos feito aquilo que já criámos em Resende e, assim hipotecar o futuro das próximas gerações: é não termos a água, nem saneamento, ter as nossas estradas esburacadas, más acessibilidades, as mais altas taxas de abandono e insucesso escolar, e termos níveis de qualificação muito reduzidos, espaços urbanos decadentes e falta de tecido económico. Essa é a verdadeira questão.

DH- Portanto, a sua grande aposta são as pessoas…
AB
- A desertificação é uma questão que se coloca em Resende e à região e por isso temos de estabelecer todos os passos para que as nossas populações tenham as suas oportunidades. Não há nenhum concelho, região ou país que possa subsistir sem níveis de qualificação adequados, vocações territoriais e sem atividade económica. Em Resende, há por vezes, a ideia que temos uma abordagem muita politiqueira do desenvolvimento do país e em especial do interior, e tem-se passado a ideia que não precisamos de investimento. É óbvio que precisamos de investir, de qualificar as nossas populações e os nossos municípios e dar-lhe assim dinâmica territorial.

DH- Como caracteriza o trabalho desenvolvido ao longo destes anos no seu concelho?
AB
- Os passos que temos dado em Resende podem situar-se em 3 grandes domínios: a qualidade infra-estrutural do nosso território, a qualificação dos nossos recursos humanos (empresários e cidadãos em geral) de níveis de conhecimento e de desempenho essenciais para o desenvolvimento da região, e também o desempenho institucional. Não vou negar que na minha qualidade de presidente da Associação de municípios do Vale do Douro Sul noto a ideia de que cada um a trabalhar para o seu lado, dê frutos no imediato, mas depois tudo acaba por ficar aquém do que se consegue noutros domínios. Um presidente de Câmara tem obrigação de não baixar o nível. Tem obrigação como responsável político de encontrar caminhos, de os afirmar. Insultar não é a melhor forma de se estar na política.

DH - Como encontrou Resende ?
AB
- Partimos do zero. Naturalmente isso pode ter algumas vantagens, mas fizemos um caminho muito consistente. Nunca parámos e criámos uma marca e conseguimos modernizar o concelho. Só para dar a ideia que, neste momento temos em curso, com grande esforço adjudicados mais de 25 milhões de euros em obra, na área da qualificação urbana e da educação. Já está adjudicado o último centro escolar, a requalificação da escola secundária e preparatória (cerca de 12 milhões de euros), a conclusão do novo quartel da GNR, a ampliação do quartel dos bombeiros, o novo estádio municipal, o fórum municipal (recuperação do antigo mercado) que está já tem contrato assinado de adjudicação e a adjudicação da primeira fase do nosso parque urbano.

DH- Um autarca deve pautar pela diferença?
AB
- Enquanto presidente da câmara tenho a noção muito clara das nossas responsabilidades e acho que continuar a modernizar os nossos concelhos e a nós como autarcas. Há que perceber que em qualquer organização as lideranças fazem toda a diferença: eu não estou aqui para passar as responsabilidades para os outros ou criar ruídos, para depois me desculpar para aquilo que não sou capaz de fazer. Nunca passei culpas na câmara, apesar de algumas dificuldades. Temos de crescer a nível de desempenho institucional no douro sul. Aqui nada nos vem ter ao colo. Eu faço parte daquele conjunto de presidentes que têm de andar com os projetos ao colo, para que aconteçam. Recordo do enorme esforço que fizemos ao nível da água e saneamento, já que tínhamos uma das mais baixas taxas de cobertura da região, requalificámos a vila de S. Martinho de Mouros, as nossas escolas, criámos equipamentos desportivos de grande nível, estamos a valorizar a nossa base produtiva tradicional.

DH- A sua ideia é modernizar a vila e o concelho?
AB
- Hipotecar o futuro, como aconteceu até agora, é ter as mais altas taxas de abandono e insucesso escolar, ter as nossas vilas e cidades num estado deplorável e que repulsam aquilo que a é a própria atividade económica e a qualidade de vida das populações. Há que perceber que em Resende foram muitos anos praticamente paralisados. Naturalmente na região, e queria dar nota, que tenho esta declaração de interesses, como militante do partido socialista, no norte do distrito nós temos de ser capazes de ir mais além, e muitas vezes quando se fala em partidos e políticas, eu queria, apesar de tudo relevar, num momento como este, alguns investimentos importantes e estruturantes da região, que têm o selo e a marca do partido Socialista: o Museu do Douro, a Escola de Hotelaria de Lamego, o novo hospital de Lamego, o sistema de abastecimento do Balsemão, a requalificação da rede escolar que dará outro perfil ao cidadão. Portanto, quando muitas vezes, dizemos que isto é algo sem sentido, esquecemo-nos que por vezes, é por aqui o caminho. Muitas vezes, as pessoas só não querem os investimentos à sua porta, uma lógica de capelinha que está instalada nos concelhos e no país. Todos querem uma auto estrada à sua porta, mas ninguém quer uma acessibilidade capaz quando se trata do vizinho do lado. A nossa função é lutar pelas nossas populações e exigir aquilo que também temos direito: infra estruturas que introduzam nos nossos territórios níveis de competitividade.

DH - Estalou uma polémica com a capacidade de internamento do hospital a construir em Lamego. O que pensa disso?
AB
- Estamos a investir na saúde como nunca se investiu. Resende tem dois hospitais a ser construídos num raio de 50 quilómetros: Lamego e Amarante, como não acontecia há um século. Um hospital de nova geração em Lamego que representa um investimento de 50 milhões não deve ser posto em causa, e por isso não podemos ter a mesma abordagem da saúde como há 20 anos. A cirurgia de ambulatório é uma prática crescente. Por isso, percebo mal este tipo de abordagem ao novo hospital, por que em Lamego deveríamos marcar com uma enorme satisfação aquilo que está a ser feito. Naturalmente é mais fácil falar do que fazer, uns falaram sempre e nunca fizeram e outros fizeram concretamente. Se o problema é de camas, seria uma boa proposta para Lamego e para a região era consolidar o investimento que está a ser feito, não o politizar e não instrumentalizá-lo na lógica política e partidária, era transformar as instalações do antigo hospital numa unidade de cuidados continuados e assim conseguirmos mais camas. Esta seria uma forma útil e contributiva para desenvolver a região.
Eu já fui presidente de Câmara com um governo de direita e a minha preocupação sempre foi consensualizar. Nunca usei a Câmara de Resende para fazer política partidária e referi muito poucas vezes o nome do meu partido, ao longo destes anos, quando tenho de gerir os interesses do meu concelho. Recordo que tínhamos hospitais a cair, que eram espaços de grande degradação e desumanidade em relação às pessoas.
Quando finalmente estamos a fazer algo as pessoas vem para a rua com politiquice, pondo em causa aquilo que é uma nova forma e conceito e qualidade de serviço.

DH- A Scut’s ficaram em stand by, mas o que pensa do conceito de utilizador pagador?
AB
- O país está numa situação complicada e quando não há recursos para cumprir com determinados compromissos há que ajustarmo-nos às realidades.
Eu aceito a lógica do princípio do utilizador pagador e aceito que é algo de inultrapassável em função daquilo que é a situação económica que atravessamos.
Mas ao colocarmos as questões do pagamentos das scut’s na região, temos de ter a garantia que serão feitos determinados investimentos nas nossas acessibilidades, tais como o IC26, e resolver as acessibilidades a concelhos como Tabuaço, Pesqueira e Resende e Cinfães, que têm são das piores do país. Eu pessoalmente troco o pagamento das portagens pelos investimentos que faltam em termos de acessibilidades na região. E percebo que tenhamos de nos ajustar todos!

DH- Em Resende o que faz falta em termos de acessos rodoviários?
AB - Em Resende estamos a falar da ligação a Baião (Ponte da Ermida) que nos coloca nas portas da área metropolitana do Porto, (a menos de 40 minutos), a ligação de Resende a Bigorne pela A24.

DH- Mas com todos estes condicionalismos financeiros há investimentos em causa…
AB
- No município estabeleci um desagravamento fiscal de 4% para todos que têm domicílio fiscal em Resende, mas confesso que prevendo mais cortes, será algo muito difícil.
Não só manter os 4%, mas sim atingir os 5% que é o meu compromisso e a margem que a Câmara tem para desagravamento fiscal. Não vou querer falhar esse compromisso, mas vou ter de ajustar o próprio funcionamento da Câmara para aquilo que é a realidade do país.
Espero que seja concretizada a rede pública de banda larga em Resende, ainda este ano, que modificará a estrutura social e económica do concelho.
Baixar os braços e pensar que não temos de investir na qualificação dos nossos territórios, termos respostas ao nível de serviço público, pensar que podemos abandonar as populações mais débeis nesta região, não ter políticas capazes sociais capazes e naturalmente acharmos que o país tem de parar e se cairmos nesse erro isso será fatal em relação ao futuro.

DH – Numa conferência realizada pela Associação de Municípios já tinham abordado os problemas que as câmaras iriam enfrentar no futuro…
AB- Sim. Em 2007 as operações financeiras realizadas pelas autarquias tinham spred zero o 0,2%, e hoje em dia estes valores dispararam para 4 ou 5%, ou pura e simplesmente não são concedidos empréstimos.
Continuou a afirmar que o que nos dividirá no futuro passa por fazer uma forte estruturação em especial das zonas mais atrasadas e o que nos separará no futuro é a linha que separa hoje a direita da esquerda (a direita acha que temos de parar) eu pessoalmente acho que nós não podemos desistir de parte do país para que outra parte do país continue.

DH – Caldas de Aregos foi a cereja no topo do bolo..
AB
- Caldas de Aregos estava numa situação absolutamente insustentável, o balneário estava por acabar e fechado uma boa parte do ano, não havia animação. Por isso tomamos posição dominante naquilo que poderá ser o grande pilar de desenvolvimento do concelho e da região: o recurso termal de Caldas de Aregos. Estamos a construir aqui as bases para uma empregabilidade mais forte, e já fizemos alguns investimentos como a colocação de um multibanco, um posto de abastecimento de combustíveis e em breve, será restabelecida a travessia no Douro, numa parceria entre a Câmara de Resende e Baião e o IPTM.
Por força da operação que fizemos o município adquiriu duas empresas: a Companhia das Águas de Caldas de Aregos e a Sociedade de Hotéis de Caldas de Aregos que foram transformadas há um ano em empresas municipais. No futuro vamos fundir as empresas e lançar um concurso público internacional para que no capital social da nova empresa que resultará desta fusão possamos integrar os parceiros privados. Desta forma será possível promover a construção do novo hotel termal, um spa termal, a atualização do concelho termal e da componente turístico-imobiliária que está subjacente a todo o aproveitamento e que representará alojamento complementar. Esta era a parceira que se impunha.

DH- A cereja também é uma grande mais valia...
AB
- Não havia praticamente tradição de cereja, mas hoje somos o principal produtor do norte do país. Temos 24% da produção naci
onal e claramente a melhor cereja do país, e que primeiro entra no mercado em toda a Europa. É sem dúvida um contributo para a economia nacional e para a economia familiar. Este é o caminho que valoriza a base produtiva e por isso não podemos achar que o mundo rural é algo que não nos diz respeito.
Só conseguimos ter politicas assertivas e sérias se não deixarmos ninguém para trás, ao desenvolver apenas espaços urbanos e deixar importantes manchas de território. As políticas do município procuram uma lógica de rede e não vamos ninguém para trás. Nas freguesias onde as questões sociais são mais importantes estamos a criar redes sociais: lares de idosos em S. Romão e Felgueiras, mas temos freguesias com dinâmicas demográficas diferentes como Freigil e Anreade onde erguemos equipamentos desportivos, em S. João de Fontoura criamos uma relação forte com o Douro com parque fluvial de Porto rei, e requalificamos centros urbanos como S. Martinho, e em S. Cipriano vamos construir o centro escolar, cujo investimento será de 1 milhão de euros num auditório .

DH- A energia eólica é um importante vetor da economia do concelho
AB
- Parque eólico uma grande oportunidade. Afinal de conta não somo uma terra de ninguém. Contribuímos em muito para a agricultura e recordo que em termos de energia produzimos seis vezes mais daquilo que consumimos.
Se todos os concelhos fizessem isso provavelmente os nossos problemas de desequilíbrio da balança de transacções correntes, e nosso problema de défice externo provavelmente não tinha este contexto.

DH- Planos para o futuro
AB
- A minha vida como autarca nunca foi fácil e acredito que neste momento cabe a nós sermos mais criativos, generosos e ainda mais atentos. Em Resende não há navegação à vista. Temos um planeamento estratégico em cada mandato que contextualiza as nossas metas.
A educação, a empregabilidade e a qualificação são algo que nos mobiliza. Tudo isto não se fará num ano. Recordo que quando o país for chamado a decidir nas próximas eleições tem de ponderar entre desistir do país o, continuar o desafio da modernização e pela luta de um desenvolvimento equilibrado.
É muito importante para os políticos e presidentes de câmara nunca baixarem o nível da discussão política no seu concelho e nem deve recorrer, ou deixar envolver-se em discussões que desprestigiem o seu nível de representatividade.

DH- Portanto, Resende está na marcha dos grandes desafios...
AB
- O grande desafio é conseguir sustentabilidade económica e empregabilidade. Se a Câmara não introduzir uma atitude indutora do próprio desenvolvimento económico e empregabilidade do concelho, tudo demorará mais a acontecer.

*Entrevista conduzida por Iolanda Vilar, que se transcreve para este blogue com devida vénia.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

HISTÓRIAS DE UMA VIDA … EM S. MARTINHO DE MOUROS: Chamo-me Brasila Cardoso e nasci em Santos, Brasil, há 93 anos*


Nascimento no Brasil

Antigamente a vida era muito difícil. Não havia trabalho e passava-se muita fome. Por isso, quem tivesse oportunidade de sair de cá não pensava duas vezes. Na altura, havia muitas pessoas daqui no Brasil. Sabia-se que a alguns correu bem a vida e até enriqueceram. Temos até o exemplo da igreja do Calvário. Uma das torres, a do lado esquerdo, foi mandada construir por um senhor de S. Martinho, emigrante no Brasil. Foi erguida quando tinha eu à volta de trinta anos. A torre do lado direito já exista quando nasci e dizem que foi uma oferta do senhor da Casa da Soenga. O meu pai, que era natural do Testamento, também emigrou para o Brasil. Não me pergunte quem lhe mandou a carta de chamada. Às tantas, foi algum familiar. Entretanto, veio cá de férias e conheceu a minha mãe. Ficou por cá uns meses largos e casaram. Só lhe digo que para cá vir é porque a vida lhe correu bem. Conheci alguns que deixaram cá mulher e filhos e abalaram para o Brasil. No princípio ainda escreviam e até mandavam algum dinheiro. Depois intervalavam cada vez mais até que a família deixava de receber notícias. Arranjavam por lá outras mulheres e a de cá tinha de se arranjar mais os filhos. Os meus pais lá foram casadinhos para o Brasil. Nasci em Santos, a 9 de Abril de 1918. Os meus pais puseram-me o nome de Brasila por ter nascido no Brasil. A minha mãe teve por lá seis filhos. Nascia em média um de dois em dois anos. Vim de lá muito pequena e, por isso, não me lembro praticamente nada desses tempos. Só sei dizer que era bem tratada e a casa era farta. Ao cabo de seis filhos, a minha mãe ficou muito doente. O médico, ao vê-la assim tão mal, disse para o meu pai: “ou a leva quanto antes para Portugal ou morre”. Acho que a minha mãe se encontrava muito fraquinha. Às tantas, foi algum mosquito. Quem ia daqui não estava preparado para enfrentar aquele clima e aquelas doenças. E ter de alimentar e educar seis filhos foi obra, o que deixava qualquer mulher com menos forças para vencer as maleitas que aparecessem.

Na quinta dos Chões, em Peneda

Seguindo o conselho do médico, viemos todos para Portugal. Com o dinheiro que conseguiram trazer os meus pais compraram uma quinta junto à povoação de Peneda. Aqui passámos uma vida boa. Era uma terra farta que tinha muita água, produzia muita batata e cereais e dava muita fruta e vinho. Os meus pais não eram uns moiros de trabalho como acontecia com tantos. Na altura de mais aperto rogavam trabalhadores das redondezas. Isto quer dizer que tinham dinheiro. Infelizmente andei pouco tempo na escola, pois ficava longe. Naquela época, também nada acontecia se se abandonasse a escola. E não era costume as raparigas andarem por aí para aprender a ler e escrever. Tenho pena que os meus pais não me obrigassem. Mas que se há-de fazer? Quando era mais crescida, chegava a sair nas tardes de domingo com três grandes amigas para ir aos bailes que se faziam por aí nos largos e eiras, junto às tabernas e vendas. Realizavam-se em muitos locais, como na Ponte, Testamento e Santa Eulália. Às vezes, ia com a minha irmã. Dizia à minha mãe: “vamos dar uma volta”. A pessoa saía, divertia-se e ela nem se apercebia ou, pelo menos, assim dava a entender. Fazia de conta, acho eu, porque se tivesse de enfrentar a verdade, ela não deixava. Nos bailes era muito notada. Diziam logo: “aí vem a filha do Sr. Cardosinho e da Sra. Carlotinha”. Muitos rapazes andaram atrás de mim. Os meus pais chegaram a ter criada e uma venda. Matavam dois porcos. Sabiam que era filha de gente rica. Entretanto, a minha mãe teve aqui mais seis filhos. Lá se criaram, porque a quinta dava de tudo. O meu pai morreu relativamente novo. Não sei de quê, mas antigamente era mais fácil morrer que hoje. Os médicos auscultavam, sim senhor, mas a doença era assim achada a olho. A receita era descanso, uns caldos brancos de galinha e uns chás quentes. Mas se calhasse a ser uma doença ruim, ou se a pessoa fosse mais de idade, lá marchava para debaixo da terra. Já com os filhos criados e depois da morte do meu pai, a minha mãe vendeu tudo o que cá tinha e voltou para o Brasil. Seis dos meus irmãos seguiram-lhe o exemplo e também foram. No início, ainda foram escrevendo, mas depois foram espaçando. Por lá ficaram e, depois de uma certa altura, nunca mais soube nada deles. Nem sei se estão vivos. Aqui só tenho uma irmã viva. Soube que a minha mãe morreu com mais de cem anos. Era má e rija. Sinceramente, da minha mãe não guardo grandes saudades. Acho que não tinha assim tanto amor por nós. Não encontro explicação para o caso de ela ter vendido tudo sem consultar os filhos e partir para o Brasil. Vendeu tudo, incluindo o que de direito pertencia aos filhos. Enganou-nos a todos. E isso não se faz. Considero-a uma mãe madrasta. Casei pobre. Caso contrário, tinha avançado para a frente com a justiça.

Muitos filhos para criar

Casei com vinte anos. Fui viver para o Pereiro para uma casa pela qual pagava renda. O meu marido era almocreve. Acartava um pouco de tudo, mas principalmente vinho, aguardente e jeropiga. Passados nove meses depois do casamento, tive logo o primeiro filho. Vim a ter doze filhos tal como a minha mãe. Dez estão vivos. Um dos filhos morreu durante o parto. Talvez se fosse hoje, as coisas correriam de modo diferente. Antigamente era preciso ter sorte, porque só tínhamos a ajuda de uma senhora que aprendeu à sua custa. Também me morreu uma filha, já com vinte e dois anos. Estava a servir e foi atropelada por um carro. Caiu para trás e teve morte imediata. Morreu assim por lá. Não recebemos qualquer indemnização. Quem é pobre é assim. Tem de se ficar quieto, porque para a gente se mexer é preciso dinheiro. No caso, cozinharam a informação como quiseram, ao gosto deles, e a gente nem pio. Os filhos estão espalhados pela Suíça, Leiria e região de Lisboa. Um deles está aqui comigo. Nunca casou e foi ficando por cá. Felizmente consegui criar os meus filhos sem fome. Claro que não havia carne nem sardinhas todos os dias, mas havia sempre qualquer coisa para encher a barriga. Como na maior parte da vida fiz umas terrinhas, havia pelo menos umas batatinha cozidas, um caldinho e pãozinho. Tinha de poupar muito. Antigamente, aproveitava-se tudo. Até as panelas de barro partidas se davam para compor. Os que sabiam do ofício ligavam os bocados com ganchos do cabelo, fazendo um furinho a que depois juntavam uma massa.

Violência doméstica

Vivi em vários locais. Uma vezes, fomos caseiros, o que era melhor, pois havia mais terras para cultivar; outras vezes, ficávamos numa casa arrendada. Nestes casos, o meu marido tinha de dar dias fora e ir ao Douro. Depois do casamento, abandonou a vida de almocreve. Por fim, vim para esta casa, aqui em Cavalhão, que foi herdada dos meus sogros. Fizemos obras, ficando um pouco maior. O meu marido morreu há vinte e dois anos. Esteve vários meses doente. Nem sei de que é que morreu. Sabe, era uma pessoa que bebia muito e isso transtornava-o. Apanhei muita porradinha. Até na cama me batia. Era de todas as maneiras e feitios. Era à bofetada, com um pau ou com uma correia. Os meus pais queriam que casasse rica, mas não tive essa sorte. Puxei para um homem assim e ainda por cima pobre. Lembro-me de uma vez ter aparecido em casa do meu pai com uma vista toda inchada. Virou-se para mim todo pesaroso e disse: “tu, além de te veres aflita para arranjar comida, ainda levas por cima”. Hoje fala-se muito em violência doméstica e as pessoas felizmente já podem fazer queixa. Antigamente, levava-se porrada com fartura e ninguém acudia nem dizia nada. Havia fome em muitas casas, mas porradinha não faltava. Os meus filhos não podiam acudir nem arrebitar. Se o fizessem, apanhavam logo tareia. Também passaram muito.


Apoio da Irmandade de S. Francisco Xavier

Há vários anos que recebo apoio da Irmandade de S. Francisco Xavier. É gente muito boa e simpática, a começar pelo Sr. António Fonseca, que só não faz mais por nós porque não pode. E é muito respeitador. Com ele ia até ao fim do mundo. O meu filho que está aqui comigo recebia o rendimento mínimo, mas, como deu uns dias fora, foi logo acusado. A comida vem do lar pelo meio dia. Em princípio, é para o almoço e jantar, mas à noite o meu filho faz qualquer coisa. De oito em oito dias, as empregadas do lar vêm cá fazer uma limpeza geral e também mudam a roupa. Sempre que preciso de ir ao médico a Resende, às urgências, a Irmandade faz o favor e vou numa carrinha deles. Ainda ontem senti necessidade de ir ao médico, porque sentia dores num joelho e no pescoço; parecia que um nervo ia saltar cá para fora. O doutor deu-me uma bisnaga para esfregar. Vamos lá a ver se isto passa. Fui numa carrinha do lar e uma empregada andou sempre comigo. Não falto aos almoços e passeios da Irmandade. Quando nos juntamos todos, é uma pândega. O lar já está pronto; falta só inaugurá-lo. É uma obra importante para os mais velhos. Quando a gente não se puder arrastar vai para lá. Acho que já lá tenho lugar. Sempre é melhor do que ir para Resende. Aqui conhecemo-nos uns aos outros, o que faz com que conversemos mais facilmente e isso ajuda a passar o tempo. Já tirei um peito e tenho uma pilha no coração. Tomo muitos medicamentos, embora durma bem e seja raro perder o apetite. Encontra-me aqui na cama, mas isto é mais preguiça. Sabe-me bem, porque hoje está muito frio. Às vezes, pergunto-me por que é que ando aqui. Mas quem é que gosta de morrer? A morte é negra. Quando a vejo mais próxima, engano-a; escondo-me. Faço como o rato quando vê o gato. Sinto o apoio da Irmandade que me vale muito. Antigamente, era pior. Quando não havia nada de comer, tinha de se ir pedir. Ainda me recordo desses tempos. Os pedintes juntavam-se às manadas. Ainda vou a S. Martinho pagar a água, luz e telefone. Também gostava de ir a Resende na carreira. Agora já vou menos. A missinha vejo-a na televisão. Por que é que hei-de ir à igreja? Só se for para ver o padre. Já não oiço o que o senhor Reitor diz. Aqui, em casa, ponho a televisão mais alto. Os meus filhos e netos vêm cá visitar-me frequentemente. Tenho cá um quartinho preparado para os receber e a sala. Também me telefonam muitas vezes.


Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.

*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Março de 2011
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