quarta-feira, 13 de abril de 2011

HISTÓRIAS DE UMA VIDA … EM S. MARTINHO DE MOUROS: Chamo-me Brasila Cardoso e nasci em Santos, Brasil, há 93 anos*


Nascimento no Brasil

Antigamente a vida era muito difícil. Não havia trabalho e passava-se muita fome. Por isso, quem tivesse oportunidade de sair de cá não pensava duas vezes. Na altura, havia muitas pessoas daqui no Brasil. Sabia-se que a alguns correu bem a vida e até enriqueceram. Temos até o exemplo da igreja do Calvário. Uma das torres, a do lado esquerdo, foi mandada construir por um senhor de S. Martinho, emigrante no Brasil. Foi erguida quando tinha eu à volta de trinta anos. A torre do lado direito já exista quando nasci e dizem que foi uma oferta do senhor da Casa da Soenga. O meu pai, que era natural do Testamento, também emigrou para o Brasil. Não me pergunte quem lhe mandou a carta de chamada. Às tantas, foi algum familiar. Entretanto, veio cá de férias e conheceu a minha mãe. Ficou por cá uns meses largos e casaram. Só lhe digo que para cá vir é porque a vida lhe correu bem. Conheci alguns que deixaram cá mulher e filhos e abalaram para o Brasil. No princípio ainda escreviam e até mandavam algum dinheiro. Depois intervalavam cada vez mais até que a família deixava de receber notícias. Arranjavam por lá outras mulheres e a de cá tinha de se arranjar mais os filhos. Os meus pais lá foram casadinhos para o Brasil. Nasci em Santos, a 9 de Abril de 1918. Os meus pais puseram-me o nome de Brasila por ter nascido no Brasil. A minha mãe teve por lá seis filhos. Nascia em média um de dois em dois anos. Vim de lá muito pequena e, por isso, não me lembro praticamente nada desses tempos. Só sei dizer que era bem tratada e a casa era farta. Ao cabo de seis filhos, a minha mãe ficou muito doente. O médico, ao vê-la assim tão mal, disse para o meu pai: “ou a leva quanto antes para Portugal ou morre”. Acho que a minha mãe se encontrava muito fraquinha. Às tantas, foi algum mosquito. Quem ia daqui não estava preparado para enfrentar aquele clima e aquelas doenças. E ter de alimentar e educar seis filhos foi obra, o que deixava qualquer mulher com menos forças para vencer as maleitas que aparecessem.

Na quinta dos Chões, em Peneda

Seguindo o conselho do médico, viemos todos para Portugal. Com o dinheiro que conseguiram trazer os meus pais compraram uma quinta junto à povoação de Peneda. Aqui passámos uma vida boa. Era uma terra farta que tinha muita água, produzia muita batata e cereais e dava muita fruta e vinho. Os meus pais não eram uns moiros de trabalho como acontecia com tantos. Na altura de mais aperto rogavam trabalhadores das redondezas. Isto quer dizer que tinham dinheiro. Infelizmente andei pouco tempo na escola, pois ficava longe. Naquela época, também nada acontecia se se abandonasse a escola. E não era costume as raparigas andarem por aí para aprender a ler e escrever. Tenho pena que os meus pais não me obrigassem. Mas que se há-de fazer? Quando era mais crescida, chegava a sair nas tardes de domingo com três grandes amigas para ir aos bailes que se faziam por aí nos largos e eiras, junto às tabernas e vendas. Realizavam-se em muitos locais, como na Ponte, Testamento e Santa Eulália. Às vezes, ia com a minha irmã. Dizia à minha mãe: “vamos dar uma volta”. A pessoa saía, divertia-se e ela nem se apercebia ou, pelo menos, assim dava a entender. Fazia de conta, acho eu, porque se tivesse de enfrentar a verdade, ela não deixava. Nos bailes era muito notada. Diziam logo: “aí vem a filha do Sr. Cardosinho e da Sra. Carlotinha”. Muitos rapazes andaram atrás de mim. Os meus pais chegaram a ter criada e uma venda. Matavam dois porcos. Sabiam que era filha de gente rica. Entretanto, a minha mãe teve aqui mais seis filhos. Lá se criaram, porque a quinta dava de tudo. O meu pai morreu relativamente novo. Não sei de quê, mas antigamente era mais fácil morrer que hoje. Os médicos auscultavam, sim senhor, mas a doença era assim achada a olho. A receita era descanso, uns caldos brancos de galinha e uns chás quentes. Mas se calhasse a ser uma doença ruim, ou se a pessoa fosse mais de idade, lá marchava para debaixo da terra. Já com os filhos criados e depois da morte do meu pai, a minha mãe vendeu tudo o que cá tinha e voltou para o Brasil. Seis dos meus irmãos seguiram-lhe o exemplo e também foram. No início, ainda foram escrevendo, mas depois foram espaçando. Por lá ficaram e, depois de uma certa altura, nunca mais soube nada deles. Nem sei se estão vivos. Aqui só tenho uma irmã viva. Soube que a minha mãe morreu com mais de cem anos. Era má e rija. Sinceramente, da minha mãe não guardo grandes saudades. Acho que não tinha assim tanto amor por nós. Não encontro explicação para o caso de ela ter vendido tudo sem consultar os filhos e partir para o Brasil. Vendeu tudo, incluindo o que de direito pertencia aos filhos. Enganou-nos a todos. E isso não se faz. Considero-a uma mãe madrasta. Casei pobre. Caso contrário, tinha avançado para a frente com a justiça.

Muitos filhos para criar

Casei com vinte anos. Fui viver para o Pereiro para uma casa pela qual pagava renda. O meu marido era almocreve. Acartava um pouco de tudo, mas principalmente vinho, aguardente e jeropiga. Passados nove meses depois do casamento, tive logo o primeiro filho. Vim a ter doze filhos tal como a minha mãe. Dez estão vivos. Um dos filhos morreu durante o parto. Talvez se fosse hoje, as coisas correriam de modo diferente. Antigamente era preciso ter sorte, porque só tínhamos a ajuda de uma senhora que aprendeu à sua custa. Também me morreu uma filha, já com vinte e dois anos. Estava a servir e foi atropelada por um carro. Caiu para trás e teve morte imediata. Morreu assim por lá. Não recebemos qualquer indemnização. Quem é pobre é assim. Tem de se ficar quieto, porque para a gente se mexer é preciso dinheiro. No caso, cozinharam a informação como quiseram, ao gosto deles, e a gente nem pio. Os filhos estão espalhados pela Suíça, Leiria e região de Lisboa. Um deles está aqui comigo. Nunca casou e foi ficando por cá. Felizmente consegui criar os meus filhos sem fome. Claro que não havia carne nem sardinhas todos os dias, mas havia sempre qualquer coisa para encher a barriga. Como na maior parte da vida fiz umas terrinhas, havia pelo menos umas batatinha cozidas, um caldinho e pãozinho. Tinha de poupar muito. Antigamente, aproveitava-se tudo. Até as panelas de barro partidas se davam para compor. Os que sabiam do ofício ligavam os bocados com ganchos do cabelo, fazendo um furinho a que depois juntavam uma massa.

Violência doméstica

Vivi em vários locais. Uma vezes, fomos caseiros, o que era melhor, pois havia mais terras para cultivar; outras vezes, ficávamos numa casa arrendada. Nestes casos, o meu marido tinha de dar dias fora e ir ao Douro. Depois do casamento, abandonou a vida de almocreve. Por fim, vim para esta casa, aqui em Cavalhão, que foi herdada dos meus sogros. Fizemos obras, ficando um pouco maior. O meu marido morreu há vinte e dois anos. Esteve vários meses doente. Nem sei de que é que morreu. Sabe, era uma pessoa que bebia muito e isso transtornava-o. Apanhei muita porradinha. Até na cama me batia. Era de todas as maneiras e feitios. Era à bofetada, com um pau ou com uma correia. Os meus pais queriam que casasse rica, mas não tive essa sorte. Puxei para um homem assim e ainda por cima pobre. Lembro-me de uma vez ter aparecido em casa do meu pai com uma vista toda inchada. Virou-se para mim todo pesaroso e disse: “tu, além de te veres aflita para arranjar comida, ainda levas por cima”. Hoje fala-se muito em violência doméstica e as pessoas felizmente já podem fazer queixa. Antigamente, levava-se porrada com fartura e ninguém acudia nem dizia nada. Havia fome em muitas casas, mas porradinha não faltava. Os meus filhos não podiam acudir nem arrebitar. Se o fizessem, apanhavam logo tareia. Também passaram muito.


Apoio da Irmandade de S. Francisco Xavier

Há vários anos que recebo apoio da Irmandade de S. Francisco Xavier. É gente muito boa e simpática, a começar pelo Sr. António Fonseca, que só não faz mais por nós porque não pode. E é muito respeitador. Com ele ia até ao fim do mundo. O meu filho que está aqui comigo recebia o rendimento mínimo, mas, como deu uns dias fora, foi logo acusado. A comida vem do lar pelo meio dia. Em princípio, é para o almoço e jantar, mas à noite o meu filho faz qualquer coisa. De oito em oito dias, as empregadas do lar vêm cá fazer uma limpeza geral e também mudam a roupa. Sempre que preciso de ir ao médico a Resende, às urgências, a Irmandade faz o favor e vou numa carrinha deles. Ainda ontem senti necessidade de ir ao médico, porque sentia dores num joelho e no pescoço; parecia que um nervo ia saltar cá para fora. O doutor deu-me uma bisnaga para esfregar. Vamos lá a ver se isto passa. Fui numa carrinha do lar e uma empregada andou sempre comigo. Não falto aos almoços e passeios da Irmandade. Quando nos juntamos todos, é uma pândega. O lar já está pronto; falta só inaugurá-lo. É uma obra importante para os mais velhos. Quando a gente não se puder arrastar vai para lá. Acho que já lá tenho lugar. Sempre é melhor do que ir para Resende. Aqui conhecemo-nos uns aos outros, o que faz com que conversemos mais facilmente e isso ajuda a passar o tempo. Já tirei um peito e tenho uma pilha no coração. Tomo muitos medicamentos, embora durma bem e seja raro perder o apetite. Encontra-me aqui na cama, mas isto é mais preguiça. Sabe-me bem, porque hoje está muito frio. Às vezes, pergunto-me por que é que ando aqui. Mas quem é que gosta de morrer? A morte é negra. Quando a vejo mais próxima, engano-a; escondo-me. Faço como o rato quando vê o gato. Sinto o apoio da Irmandade que me vale muito. Antigamente, era pior. Quando não havia nada de comer, tinha de se ir pedir. Ainda me recordo desses tempos. Os pedintes juntavam-se às manadas. Ainda vou a S. Martinho pagar a água, luz e telefone. Também gostava de ir a Resende na carreira. Agora já vou menos. A missinha vejo-a na televisão. Por que é que hei-de ir à igreja? Só se for para ver o padre. Já não oiço o que o senhor Reitor diz. Aqui, em casa, ponho a televisão mais alto. Os meus filhos e netos vêm cá visitar-me frequentemente. Tenho cá um quartinho preparado para os receber e a sala. Também me telefonam muitas vezes.


Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.

*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Março de 2011
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