terça-feira, 2 de outubro de 2012

Entrevista a Ana Correia, vice-presidente do Rancho Folclórico e Etnográfico de Cárquerere*

 O Rancho Folclórico e Etnográfico de Santa Maria de Cárquere (RFESMC) organizou, no dia 19 de agosto, o XXV Festival de Folclore, um evento que se repete anualmente no 3.º domingo de agosto. O Jornal de Resende (JR) aproveitou a comemoração desta data marcante de uma das principais coletividades do concelho, que se dedica a divulgar a cultura e as tradições populares das gentes de Resende, para entrevistar a sua vice-presidente, Ana da Conceição Correia (AC).

Entrevista conduzida por Paulo Sequeira

Jornal de Resende (JR): O Rancho Folclórico e Etnográfico de Santa Maria de Cárquere foi fundado em 1981, embora as pesquisas e recolhas etnográficas só se iniciassem em 1983. Quem esteve na sua origem?
Ana Correia (AC): A bandeira da Associação tem a data de 1975 mas a escritura pública é de 10 de março de 1981. Na sua fundação, esteve um conjunto de sócios liderado pelo Dr.º Albino Brito de Matos, que se manteve como Presidente da Direção até 2011.

JR: O Dr.º Albino Brito de Matos, sócio fundador e presidente de 1981 a 2011, teve um papel fundamental…
AC: O Dr.º Albino Brito de Matos é o grande responsável por tudo o que a Associação fez durante a sua existência. Foi e continuará a ser o pilar e a força que nos move para darmos continuidade à nossa missão de defender os valores, princípios e tradições de um povo cuja história queremos preservar.

JR: Como foram os primeiros tempos?
AC: A partir de 1983, entendeu-se que era necessário tratar o folclore duma forma mais séria. Iniciou-se, então, a pesquisa e recolha dos usos, costumes e tradições antigas, através de entrevistas às pessoas mais idosas, da recolha e do estudo de testemunhos que permitissem a reconstituição do modo de viver das pessoas da nossa terra, em finais do século XIX e princípios do século XX. Com esta base, e com o aval da Federação do Folclore Português, estudámos e selecionámos os nossos trajes, as nossas danças e cantigas, que nos identificam e que procuramos divulgar com todo o respeito e a dignidade que merecem.

JR: Quando organizaram o 1.º Festival de Folclore?
AC: O 1.º Festival realizou-se no dia 31 de julho de 1988. O 3.º domingo de agosto foi a data escolhida nos 24 anos que se sucederam até ao presente.

JR: Que razões levaram à sua organização?
AC: Foi sobretudo uma grande vontade em iniciar um percurso de apresentação e divulgação das tradições da nossa terra. Contámos com o incentivo e o apoio técnico da FFP, através do seu Presidente, o saudoso Sr. Augusto, e do Conselho Técnico, na pessoa da D. Cândida, responsável pelo Rancho das Pias (Cinfães), que foi o nosso Padrinho no 1.º Festival.

JR: Em 1989, o Rancho foi Federado. O que foi necessário para atingir esse estatuto?
AC: Ser um rancho federado significa obter um estatuto de qualidade, que passa pelo cumprimento e aceitação de um vasto conjunto de procedimentos e regras que a FFP propõe aos grupos filiados. Para um rancho atingir esse patamar, é necessário estar no folclore com muita seriedade e responsabilidade, com humildade, honestidade e muita força de vontade e trabalho. Foi o nosso caso.
O nosso 1.º Festival foi supervisionado pelo Presidente da FFP, que, no dia seguinte, nos convidou para viajar para França no prazo de uma semana para participar num Festival Mundial de Folclore. Isto significava que tínhamos passado no teste e ele estava a dar-nos um presente que pretendia, mais uma vez, pôr-nos à prova. Penso que também passamos neste teste e ao fim de um ano, em 1989, depois de realizarmos o 2.º Festival, fomos finalmente federados.

JR: Quais são os trajes e utensílios típicos do Rancho?
AC: Os trajes e utensílios típicos retratam os usos e costumes da nossa terra em finais do século XIX e princípios do século XX.
As pessoas do rancho usam trajes de trabalho: de pastor, da malha, da rega, da ceifa, de vindimador do Douro, de inverno e outros. Todos estes trajes são pobres e simples e são confecionados em tecido de riscado, cotim, chitas, tal como era uso. Também há alguns trajes usados em dias de festa, de feira, ou romaria, domingueiro, os noivos e o lavrador abastado. Estes são mais ricos, mais coloridos e vistosos.
Os utensílios usados são alguns adereços que completam o traje e que se utilizavam nos trabalhos do campo, tais como a crossa, a breza, a enxada, o engaço de madeira e outros.

JR: Mais tarde, em 2009, o Rancho obteve a Declaração de Utilidade Pública…
AC: Esta foi uma aspiração que levou alguns anos a concretizar. Foi um processo moroso, pois tivemos que instruir o pedido de adesão por várias vezes. Para o efeito, beneficiámos dos pareceres favoráveis emitidos por várias entidades a nível local e nacional e, felizmente, atingimos esse patamar em 2009.

JR: Quantas atuações fizeram no estrangeiro?
AC: Três. Em França, em 1988, e em Itália, por duas vezes: na Sardenha (1991) e na Sicília (2006). As viagens dos ranchos ao estrangeiro são sempre recheadas de histórias inesquecíveis e originam momentos únicos de diversão, de camaradagem e de grande cumplicidade entre as pessoas.

JR: A nível nacional, para além da participação em inúmeros festivais, estiveram em programas de televisão e de rádio…
AC: A nível televisivo, estivemos em direto na RTP Internacional, aquando da nossa participação no Festival do Algarve, em setembro de 1994, bem como na “Praça da Alegria” (RTP1), num programa sobre a Festa da Cereja de Resende. Participámos, também, num programa para uma televisão holandesa, na Quinta das Carvalhas, em representação do folclore do Douro. A nível radiofónico, estivemos na Emissora Regional de Resende, na Rádio Renascença, na Antena 1 e na Rádio Montemuro, entre outras.

JR: Também participaram numa produção luso-brasileira, o “Rio do Ouro”…
AC: Essa experiência foi muito interessante, para além do privilégio de contracenar com o famoso ator brasileiro Lima Duarte. Alguns elementos do nosso Rancho foram escolhidos para participarem como figurantes em algumas cenas gravadas em S. Martinho de Mouros, em Mesão Frio e em Porto de Rei. No filme, há uma cena de um arraial popular em que se ouve a música da nossa dança “Se eu fosse ladrão roubava…”

JR: Destas vivências, no âmbito do folclore, há sempre histórias engraçadas…
AC: Recordo, com muito carinho, uma cena relacionada com uma pessoa muito especial, a nossa jovem de quase 70 anos, a senhora Mariana, no Festival do Algarve. Estávamos 18 grupos para dançar e como o festival era transmitido em direto pela televisão, o tempo de atuação dos ranchos era controlado com muito rigor. Quando chegou a nossa vez de dançar fomos empurrados para o palco com tanta pressa e foi tudo tão rápido que a Sra. Mariana nem teve tempo de calçar os tamancos e colocou-os sobre a cabeça e assim esteve, muito quieta, durante os três minutos e meio que durou a nossa apresentação. Foi muito divertido ver depois a gravação…

JR: A chula Rabela é a dança ex-libris do Douro e do Rancho Folclórico e Etnográfico de Santa Maria de Cárquere. O que a distingue das chulas de outros Ranchos, nomeadamente do Rancho Folclórico e Etnográfico de Paus?
AC: A chula rabela é a dança que melhor representa o Douro e era a única que, nesta região, se dançava em fila. Era acompanhada pela “rabeca chuleira” e cantada em jeito de desafio por um homem e uma mulher.
Há muitas variantes da chula e todas elas são especiais, apesar de diferentes. O Rancho de S. Pedro de Paus dança a sua chula tal como o fizeram, outrora, as pessoas que viveram na encosta por onde se estende a freguesia. A nossa chula é a chula rabela de outras gerações e tem o ritmo e a marcação do Douro.

JR: Presentemente, estão empenhados na conclusão da sede social e do Museu Etnográfico. Qual é o ponto da situação?
AC: A nossa casa, como gostamos de lhe chamar, é um sonho tornado realidade, embora os custos da sua construção sejam muito elevados. A parte da obra da sede social e salão de festas do rancho está quase concluída. Falta-nos, ainda, o mobiliário e o equipamento da cozinha. Estamos empenhados em tentar encontrar ajuda financeira para podermos continuar a obra e iniciar a construção do Museu Etnográfico. Este espaço é fundamental para podermos guardar e expor, em boas condições de conservação, muitos dos artefactos e peças antigas que recolhemos e que merecem ser divulgadas e preservadas para as gerações futuras.

JR: Com quantos elementos conta, atualmente, o rancho e quantas vezes se reúnem para os ensaios?
AC: Frequentam, mais assiduamente, o rancho cerca de 50 elementos, embora na totalidade dos componentes e dirigentes o número seja superior a 60. Todas as semanas, normalmente aos sábados, e nas vésperas das saídas, juntamos todos os elementos do rancho para fazer os ensaios.

JR: Têm outras atividades de cariz recreativo, para além do folclore e da etnografia?
AC: Organizámos várias atividades, ao longo do ano, como por exemplo os convívios e festas, magusto, ceia de Natal, baile de Carnaval, karaoke, torneios de malhas e de cartas, a festa das papas, entre outras.

JR: De que forma divulgam as atividades?
AC: Temos um site (ranchocarquere.com.sapo.pt) e também usamos o facebook como forma de dar a conhecer as nossas atividades.

JR: Na freguesia de Cárquere, há outra associação, o Grupo de Danças e Cantares “Os Moleiros” de Santa Maria de Cárquere, que tem por temática o folclore e a etnografia. Qual o tipo de relação entre este e outros Grupos existentes no concelho?
AC: Cada um dos grupos concelhios, à sua maneira e de formas diferentes, procura desenvolver a sua atividade como lhe é possível, atendendo a que muitas vezes enfrentam limitações e entraves de vária ordem que é necessário ultrapassar. Penso que todos procuram dar o seu melhor. O relacionamento entre os grupos de folclore existentes no concelho é muito limitado, pois raramente existem oportunidades a nível concelhio para que haja intercâmbio e convivência entre os grupos. Em Cárquere, o relacionamento com os nossos conterrâneos Moleiros é de maior proximidade devido à existência de laços de amizade e relações de parentesco que ligam os elementos de ambos os grupos.

JR: Como auguram o vosso futuro e o do Folclore nacional?
AC: O nosso rancho tem 31 anos de existência. Ao longo deste período, fomos construindo um historial que nos enriquece e nos dá vontade de seguir em frente, continuando a trabalhar para dignificar o folclore e divulgar a nossa terra. Temos, entre nós, gente empenhada e disposta a trabalhar e, por isso, o futuro só poderá ser melhor do que foi o nosso passado. Espero que este rancho cresça ainda mais e possa afirmar-se como um defensor acérrimo das raízes e das tradições populares.
*Publicada no Jornal de Resende, n.º de Setembro de 2012
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