terça-feira, 25 de novembro de 2014

REFORMADOS, EMÉRITOS, ETC.*

Há muito que me pergunto porque é que uns são reformados, outros jubilados, outros eméritos, outros pensionistas ou aposentados. Pus-me no encalço das palavras, à procura do seu sentido originário. O que aí fica é o resultado, confesso que um pouco apressado, desse exercício.

1. Claro que reformado vem de reforma. A reforma que, em certos contextos, aparece mais imediatamente é a Reforma protestante. Aqui, porém, ela tem que ver com a situação de ir para a reforma e receber uma reforma, que é, em princípio, um quantitativo em dinheiro. Reformado é, pois, o que passou à reforma, por ter atingido uma certa idade e trabalhado um certo número de anos, com os respectivos descontos, ou porque ficou pura e simplesmente incapacitado para o trabalho. De modo estranho, reforma vem do latim reformare, com o significado de voltar à primeira forma, restabelecer, alterar, e reformado é o que torna à sua primeira forma, mas também o desfigurado, modificado.

Quem diria que pensionista tem na sua raiz o verbo latino pensar e (pensar e pesar)? De facto, pensar e, palavra vinculada a pendere, em latim, significa pesar, no sentido de comparar pesos. Daí, pensar significa pesar razões, para entender, julgar e decidir. No caso de pensão, lá está o facto de pesar uma mercadoria e ter de pagá-la e, daí, pensionista como aquele ou aquela que recebe uma pensão.
Entre nós, os bispos, ao chegarem aos 75 anos, tornam-se eméritos, palavra que também se pode aplicar, sobretudo noutros países europeus, aos professores universitários. Emeritusé o particípio do verbo latino emerere, merecer, ter cumprido um serviço, ganhar algo a partir daí. O emérito é merecedor de um determinado status (pense-se, por exemplo, no Papa emérito Bento XVI) ou recompensa por ter terminado ou concluído adequadamente o seu serviço. Na Roma Antiga, emeritus aplicava-se concretamente ao veterano retirado do exército, mas também a outros casos. De qualquer modo, deve-se recompensar o mérito; mas será que ele existe em todos os casos?
O aposentado remete para o verbo latino pausar e, que significa parar para descansar, pousar, repousar. O hóspede "pousa" na casa de um amigo. Quem peregrina pela vida tem direito a pousar, repousar, descansar, fazer pausa, aposentar-se, cessando o trabalho.
Nomeadamente os magistrados e os professores universitários são jubilados. A palavra vem do latim jubilare, que significa lançar gritos de alegria, - originariamente, referia-se aos gritos e silvos dos camponeses para comunicar entre si e chamar o gado -, mas também tem que ver com a palavra hebraica yobel, som da trombeta a anunciar o jubileu, festa judaica que se celebrava cada 50 anos e que trazia a libertação e o repouso inclusivamente às terras. No jubileu cristão, o Papa concede indulgências especiais. A jubilação nasce da conexão entre o retirar-se após o ciclo do trabalho realizado e dos serviços prestados e a consequente satisfação - dizem as más línguas que, por vezes, no caso dos professores, o júbilo é sobretudo dos estudantes, que se vêem libertos de alguém incompetente, porque sabe pouco ou não sabe ensinar.

2. Apesar das diferenças nas categorias, nos títulos e sobretudo no quantitativo, por vezes miserável e escandalosamente diferente, da reforma, todos - pensionistas, eméritos, jubilados, aposentados-são sobretudo isso: reformados.
Claro, a reforma pode trazer alegria e o tal júbilo, porque se deixa de trabalhar com horários e todo o peso institucional e se pode repousar, fazer outras coisas que nunca se tinha podido fazer, ler, reflectir e recordar a vida e dedicar-se mais à família e aos amigos e recolher os frutos de uma vida preenchida. Mas ela pode também trazer o aumento dos achaques, uma solidão amarga e corrosiva, e, de qualquer modo, lembra a todos que se está na última fase da existência e que o futuro neste mundo será cada vez menos pujante. Decisivo é então esforçar- se por manter a actividade física, mental, social, criar a sedução por novos interesses e talvez dar a Deus o lugar que nunca teve. É preciso viver sempre intensamente cada instante do milagre exaltante do mundo e do existir.

3. Mas é preciso reconhecer também que há algo de cínico e sarcástico na palavra jubilação (em Espanha, usa-se para todos) , sobretudo quando se pensa como são tratados os reformados, os tais que a sociedade abandona porque são velhos, e deixaram o trabalho por invalidez e velhice, considerados agora socialmente inúteis, porque não produtivos, e, por isso, colocados em depósitos à espera do fim.
Cá está: em tempos de crise, os governos, para a austeridade, têm sempre facilmente à mão os reformados, com este ou aquele nome, porque pouca ou nenhuma falta fazem - podem até ser considerados um peso para os outros e sobretudo para o erário público -, e, assim, nem protestar podem, muito menos com uma greve, porque ninguém precisa deles. Que júbilo!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 22 de Novembro de 2014

terça-feira, 18 de novembro de 2014

MORAL, VÍTIMAS E DEUS*



Vínculo inevitável 
entre moral e religião 
dá-se pela esperança, 
sobretudo quando se pensa
 nas vítimas inocentes

Após conflitos e condenações, a Igreja reconheceu a legítima autonomia das realidades terrestres, o que significa que, por exemplo, a ciência, a medicina, a política, a economia se regem pelas suas própria leis, sem a tutela da religião. Sobretudo quando se olha para o mundo islâmico, fica bem patente a importância desta autonomia nomeadamente na política, exigindo a separação da Igreja e do Estado.
Também a moral é autónoma. Aliás, na perspectiva cristã, autonomia e teonomia acabam por coincidir, na medida em que, se Deus cria por amor, então a plena e adequada realização humana, que deve constituir a norma e o critério da acção humana boa, coincide com a vontade de Deus, cujo único interesse são as criaturas totalmente realizadas: a vontade de Deus é o bem da criatura. De qualquer modo, a exigência moral não surge do facto de se ser crente ou não, mas da condição humana de querer ser pessoa autêntica e plena, o que significa que, como escreveu A. Torres Queiruga, "desde que um e outro queiram ser honestos, não existe nada que no nível moral um crente deva fazer e um ateu não". Assim, só para dar um exemplo, a propósito da jovem Brittany Maynard, que decidiu a sua morte por suicídio assistido no passado dia 1, depois de os médicos lhe terem diagnosticado um cancro incurável no cérebro, que lhe causaria uma morte dolorosíssima: mesmo do ponto de vista cristão, está-se perante uma situação de decisão moral legítima, no quadro da autonomia, que, aliás, como é sabido, o famoso teólogo Hans Küng reclama também para si, ao colocar-se a mesma possibilidade próxima: "Precisamente porque creio na vida eterna, posso, quando for o tempo, com responsabilidade, decidir sobre o momento e o modo da minha morte."
O que aí fica dito não quer dizer que não haja relações entre moral e religião. Isso acontece, por exemplo, quando se procura aprofundar o fundamento incondicional e definitivo da moral. Neste sentido, veja-se este texto de Sigmund Freud, numa carta a um amigo: "Pergunto-me a mim mesmo porque aspirei sempre a comportar-me com honra, a mostrar consideração e afecto para com os outros, sempre que as circunstâncias o permitiram. Perguntei-me permanentemente o porquê disto, mesmo depois de dar-me conta de que me prejudicava a mim mesmo e de que choviam os golpes sobre mim, porque as pessoas são brutais e traiçoeiras, e não fui capaz de dar uma resposta a mim mesmo, o que está longe de ser razoável."
A Escola Crítica de Frankfurt é particularmente sensível neste domínio. Assim, Max Horkheimer disse: "Visto sob o aspecto meramente científico, o ódio não é pior do que o amor, apesar de todas as diferenças sociofuncionais. Não existe nenhuma argumentação lógica concludente pela qual não deva odiar, se, desse modo, não me causo nenhuma desvantagem na vida social. Como pode fundamentar-se com exactidão que não devo odiar, se isso me causa prazer? O positivismo não encontra nenhuma instância transcendente aos homens que distinga entre disponibilidade e afã de proveito, entre bondade e crueldade, avareza e entrega de si mesmo. Também a lógica emudece: não reconhece primado algum à dimensão moral. Todo o intento de fundamentar a moral em prudência terrena, em vez de fazê-lo a partir do ponto de vista do Além - nem mesmo Kant resistiu sempre a esta tendência -, baseia-se em ilusões harmonizadoras. Tudo o que tem relação com a moral baseia-se, em última análise, na teologia."
Jürgen Habermas, que vê na religião uma capacidade especial de mobilização moral: "Certamente, a filosofia pode continuar a explicar ainda hoje o ponto de vista moral a partir do qual imparcialmente julgamos algo como justo ou injusto; portanto, a razão comunicativa não está de maneira nenhuma à mesma distância da moralidade e da imoralidade. Mas coisa distinta é encontrar a resposta motivante à questão de porque é que temos de ater-nos às nossas convicções morais, de porque é que temos de ser morais. Neste aspecto, poderia talvez dizer-se que é vão querer salvar um sentido incondicionado sem Deus."

Vínculo inevitável entre moral e religião dá-se pela esperança, sobretudo quando se pensa nas vítimas inocentes. Aliás, Kant, teorizando sobre a autonomia da moral, postulou Deus pela exigência da esperança. Nessa linha, Paul Ricoeur falou "da carga da ética e da consolação da religião". Por isso, segundo Walter Benjamin, não é possível pensar a história sem teologia. E, neste contexto, Júrgen Habermas, referindo-se às vítimas inocentes e à dívida da história para com elas, cita Jens Glebe-Mõller: "Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama Deus."
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 15 de Novembro de 2014

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

HAWKING E FRANCISCO*

1. Que disse o cientista inglês Stephen Hawking? "Antes de termos entendido a ciência, o lógico era crer que Deus criou o universo, mas agora a ciência oferece uma explicação mais convincente. Não há Deus. Sou ateu. A religião crê nos milagres, mas estes não são compatíveis com a ciência."
Pensa que o homem acabará por entender a origem e a estrutura do universo. "De facto, já estamos perto de conseguir este objectivo. Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana." Por isso, julga que a exploração espacial deve continuar e os grandes avanços científicos e tecnológicos neste domínio poderão "evitar o desaparecimento da Humanidade, graças à colonização de outros planetas".

2. O Papa Francisco veio afirmar que o Big Bang "não contradiz a intervenção criadora divina; pelo contrário, exige-a", desacreditando assim completamente os "criacionistas" e a sua leitura literal da Bíblia.
Duas declarações fundamentais. Por um lado, não há incompatibilidade entre o Big Bang e a fé no Deus criador, a evolução da natureza não contradiz a ideia de criação. Por outro lado, Francisco desfez a ideia infantil de um Deus mágico ou feiticeiro. Deus, que dá o ser a todos os seres, respeita a autonomia das criaturas, nomeadamente a autonomia do ser humano.
Textualmente: "Quando lemos no livro do Génesis o relato da criação, julgamos imaginar que Deus é um mago que com uma varinha mágica fez todas as coisas. Mas não é assim. Ele criou os seres e deixou-os desenvolver-se segundo as leis internas que deu a cada um, para que alcançassem o seu próprio desenvolvimento. Deu a autonomia aos seres do universo ao mesmo tempo que lhes assegurava a sua presença contínua, dando o ser a toda a realidade. E assim a criação prosseguiu a sua marcha por séculos e séculos, milénios e milénios, até transformar-se no que hoje conhecemos; precisamente porque Deus não é um mago mas o Criador que dá o ser a todas as coisas. O início do mundo não é obra do caos que deve a outro a sua origem, mas deriva directamente de um Princípio supremo que cria por amor. O Big Bang, que hoje se situa na origem do mundo, não contradiz a intervenção de um Criador divino; pelo contrário, exige-a. A evolução da natureza não se opõe à noção de criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem".
O ser humano, que constitui na história da evolução "uma mudança e uma novidade", tem "uma autonomia diferente da da natureza": chama-se liberdade. Participando do poder de Deus, é sua missão investigar a natureza e as suas potencialidades, colocá-las com responsabilidade ao serviço da humanidade, salvaguardar a criação e "construir um mundo humano para todos os seres humanos e não para um grupo ou classe de pessoas privilegiadas".

3. Aí estão duas tomadas de posição frente ao enigma do universo, mais concretamente, do enigma da existência humana. Elas contrapõem-se, mas nem uma nem outra assenta na ciência. De facto, com argumentos científicos, não se chega a Deus, mas também não se demonstra o ateísmo. Deus não é objecto de saber científico. A ciência não sabe se Deus existe ou não existe. Quem afirma que Deus existe fá-lo baseado na fé, com razões. Quem afirma que Deus não existe fá- -lo também num acto de crença, com razões. Há razões para acreditar em Deus e razões para não acreditar.
Segundo as exigências do seu próprio método, a ciência não pode pronunciar-se sobre as grandes questões metafísicas. Mas, na presente situação do conhecimento científico, são os próprios resultados da ciência que desembocam num universo enigmático, aberto a um fundo último, misterioso, deixando o ser humano numa profunda incerteza metafísica, como escreve o neurólogo e filósofo Javier Monserrat. Quando se pergunta pelo fundamento último, o homem fica aberto a duas hipóteses metafísicas, não sabendo com certeza se se trata de um puro mundo sem Deus ou se o universo se fundamenta em Deus.
A imagem que a ciência segundo o modelo-padrão nos dá é a de um universo que se produz a partir do Big Bang e terminará numa morte energética, portanto, um universo finito e, assim, "um universo que nasce a partir de um 'fundo' desconhecido no qual ficará reabsorvido". A pergunta que então se coloca é como entender esse fundo ou "mar de energia", essa espécie de meta-realidade a que o universo está referido. O ateísmo poderia ser uma conjectura metafísica filosoficamente possível: "O metafísico seria uma realidade impessoal na qual se produziria de modo cego o nosso universo." Mas o teísmo é uma conjectura metafísica igualmente possível: "O metafísico poderia ser uma Inteligência Pessoal capaz de criar o universo."
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 8 de Novembro de 2014
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