terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Catálogo das doenças da Cúria*


Estou convencido de que nunca pensaram ter de ouvir o que ouviram. Estavam os cardeais, bispos, monsenhores na bela Sala Clementina, para a saudação natalícia papal. A Cúria — governo e administração central da Igreja — esperaria palavras diplomáticas, alusivas à data. Mas o Papa Francisco veio com o Evangelho, num discurso profético e arrasador.

A. Como seria belo, começou, "pensar que a Cúria romana é um pequeno modelo da Igreja". No entanto, "como todo o corpo humano, está exposta à doença, ao mau funcionamento". E enumerou, em tom duro, algumas destas doenças da Cúria.

1. Tudo gira à volta da "patologia do poder". Assim, a primeira doença é a de "sentir-se imortal, indispensável", que leva ao narcisismo e a considerar-se superior a todos e não ao serviço de todos. Por isso, aconselhou uma cura de humildade: passar por um cemitério e ver os nomes de tantos que também pensaram que eram imortais e indispensáveis. "Uma Cúria que não se autocrítica, que não procura melhorar é um corpo doente". 2. Outra doença é o "martismo". No Evangelho, há duas irmãs: Marta e Maria e, enquanto esta escuta Jesus, Marta corre e atarefa-se sem descanso. O martismo é, pois, o trabalho excessivo, no stress, na agitação, sem repouso para a meditação e interioridade. 3. Há também a "fossilização mental e espiritual", que leva à perda da sensibilidade necessária para chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram. 4. Lá está ainda a doença do excesso de planificação e do funcionalismo, que conduz a posicionamentos estáticos e imutáveis, com a pretensão de domesticar o Espírito. 5. A doença da má coordenação, perdendo o espírito de colaboração e equipa. 6. A doença do "Alzheimer espiritual": perdeu-se a memória do encontro com Jesus e com Deus e vive-se então na dependência de concepções imaginárias, das próprias paixões, caprichos e manias. 7. Lá estão "a rivalidade e a vanglória", transformando-se a aparência, as honras e as medalhas honoríficas no primeiro objectivo da vida. 8. A doença da "esquizofrenia existencial", que é a de "quem vive uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio espiritual que títulos académicos não podem preencher". Doença que afecta sobretudo quem se limita às coisas burocráticas e perde o contacto pastoral. 9. A doença dos "rumores, mexericos, murmurações, má-língua", que pode levar ao "homicídio a sangue frio". Cuidado com "o terrorismo dos rumores, do diz-se!". 10. A doença de "divinizar os chefes", própria de quem idolatra os superiores: "são vítimas do carreirismo e do oportunismo". 11. A doença da indiferença para com os outros. 12. A "doença da cara de funeral": são pessoas" bruscas e grosseiras", sem alegria nem delicadeza. 13. A doença da acumulação de bens materiais, querendo assim preencher "um vazio existencial no coração". 14. A doença dos "círculos fechados", com o perigo de cortar a relação com o Corpo da Igreja e até com o próprio Cristo. 15. A última é "a doença do mundanismo, do exibicionismo", transformando o serviço em poder.


B. É claro que "estas doenças e tentações são naturalmente um perigo para cada cristão e para cada cúria (diocesana), comunidade, paróquia, movimento eclesial, e podem ferir tanto a nível individual como comunitário", concluiu. Aliás, podemos acrescentar que as tentações de sentimento de imortalidade, Alzheimer espiritual, esquizofrenia existencial, exibicionismo, materialismo, vaidade, nepotismo, martismo... são tentações de governantes e cidadãos em geral, em toda a parte. Mas, aqui, sem adoçar as palavras, Francisco dirigiu-se directamente à Cúria romana, que não quer como corte e que não reagiu entusiasta ao discurso, apenas com palmas tímidas e frouxas. Possivelmente, a Cúria ao longo dos tempos terá feito mais ateus e provocado mais abandonos da Igreja do que Marx, Nietzsche, Freud e outros pensadores ateus juntos.

Recentemente, o historiador da Igreja, Andrea Riccardi, fundador da célebre Comunidade de Santo Egídio, ex-ministro da Itália e amigo de Francisco, advertiu que "o Papa tem muita oposição dentro e fora da Cúria, e sabe-o". Francisco está a operar uma revolução na Igreja e tem consciência de que há maquinações no sentido de um restauracionismo pré-conciliar. Mas também sabe, como acrescentou Riccardi, que, sem o Concílio Vaticano II, "a Igreja teria naufragado e seria uma pequena comunidade com um grande passado". "A Igreja errou ao apresentar-se como o partido dos valores tradicionais", e "aceitar o desafio de ser Igreja-povo é crucial". Francisco é consciente de que, sem reformas estruturais na Igreja, corre o risco de, desaparecendo ele, o seu pontificado vir a ser considerado como um simples parêntesis. Por isso, invocou a urgência de conversão da Cúria. Fê-lo, à luz do Evangelho, frente à Cúria e sabendo que a maior parte da Igreja e da opinião pública mundial está do seu lado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 27 de Dezembro de 2014

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Herança cristã da Europa*

No contexto dos debates à volta da entrada ou não da Turquia na União Europeia, o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel da Literatura de 2006, fez, na sua recente visita a Lisboa, algumas considerações sobre os valores fundamentais da Europa, que merecem atenção. Foi dizendo que a herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, pois não pode esquecer "a preservação dos seus valores fundamentais", acrescentando que "temos de ter uma discussão séria sobre esses valores".
Pamuk não concretizou muito quanto a estes valores. Assim, talvez se deva ter em atenção o que disse, há um ano, a um jornalista colombiano, que lhe perguntou se se sentia europeu: "Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na Modernidade, na 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas, se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar."
Precisamente aqui é que está a razão por que chamo a atenção para estas declarações. De facto, a pergunta é: tudo aquilo que Pamuk quer, e bem - Renascimento, Modernidade, Liberdade, Igualdade, Fraternidade -, são pensáveis, sem terem na sua base precisamente o cristianismo?
Vou citar uma série de grandes e reputados pensadores que mostram que não, e trata-se de pensadores que são agnósticos ou ateus. Por exemplo, o historiador Antonio Piñero dizia recentemente, depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade teológica de todas as pessoas enquanto filhas de Deus: "Esperava-se que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos os homens é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está por trás, à maneira de fermento, de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na história, embora agora o não vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nessas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã."
Houve erros e tragédias, guerras, colonialismo, Cruzadas, Inquisição, no contexto do cristianismo histórico? Ninguém o pode negar. Mas é também inegável a sua influência positiva no melhor dos últimos dois milénios da história da humanidade, incluindo a actualidade. Por isso, o filósofo ateu convicto e combatente, Michel Onfray, escreve no seu Tratado de Ateologia: 'A carne ocidental é cristã. Incluindo a dos ateus, muçulmanos, deístas e agnósticos educados, criados ou instruídos na zona geográfica e ideológica judeo-cristã." O filósofo André Comte-Sponville também escreve: "Sou ateu, uma vez que não creio em nenhum deus, mas fiel, porque me reconheço como parte de determinada tradição, de determinada história e dos seus valores judeo-cristãos (ou greco-cristãos), que são os nossos."
Na sua recente obra, Sagesses d'hier et d'aujourd'hui (Sabedorias de ontem e de hoje), na qual traça a história essencial das sabedorias e filosofias ao longo dos tempos, o filósofo Luc Ferry, que foi ministro da Educação de França, dedica um grande capítulo a "Jesus e a revolução judeo-cristã". Aí se lê, logo à entrada: "Entre os séculos V e XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, mesmo quando foi crítica das religiões e até resolutamente ateia, não esteve menos marcada de modo decisivo por esta herança religiosa." E dá o exemplo do idealismo alemão, acrescentando: "Assim, mesmo para os que não são crentes, o fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente, de tal modo que é sempre indispensável interessar-se por ela e captar os seus principais traços, em ordem a compreendermo-nos a nós mesmos e compreender o mundo no qual vivemos." E, depois de apresentar características essenciais do cristianismo, raízes e herança da Europa democrática e dos direitos humanos, conclui: "Mesmo quando se é radicalmente não-crente, está-se evidentemente impregnado por esta cultura cristã que dominou a história do Ocidente, mas que não se reduziu a ele."
No Natal, o que está em festa essencial é a infinita dignidade humana, que veio ao mundo em Jesus Cristo. Boas-Festas!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 20 de Dezembro de 2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A DIGNIDADE DE SER ATEU*

A liberdade religiosa é um direito humano fundamental. Poder-se-ia mesmo dizer que é o direito mais fundamental, na base de todos os outros direitos, na medida em que, estando referido ao infinito-liberdade de acreditar em Deus ou não, seguir esta religião ou aquela ou nenhuma, mudar de religião -, mostra a transcendente dignidade humana no confronto com o infinito.
Nem sempre houve esta compreensão, também entre os cristãos e nomeadamente na Igreja Católica. Quando se olha para a história, encontramos, neste domínio, um estendal de miséria e vergonha. Houve guerras religiosas, Inquisição, assassínios, prisões, conversões sob ameaça de morte, tudo por causa de interesses de domínio: religioso, político, económico, geoestratégico.
Felizmente, há hoje no Ocidente a afirmação clara do direito à liberdade religiosa, garantida por Estados não confessionais, dentro da separação do Estado e das Igrejas. E hoje, de facto, o cristianismo é, de longe, a religião mais perseguida no mundo. Veja-se o volumoso "Livro negro da condição dos cristãos no mundo", recentemente publicado.

Desgraçadamente, o Relatório 2014 da Ajuda à Igreja que Sofre sobre as violações da liberdade religiosa no mundo é tudo menos animador. Entre os vinte países com a mais alta taxa de intolerância religiosa, há doze que pioraram no último ano: Iraque, Líbia, Nigéria, Paquistão, Síria, Sudão, Azerbaijão, China, Egipto, República Centro-Africana, Usbequistão, Myanmar, e quinze têm um regime de governo muçulmano, a que se deve juntar a Nigéria, religiosamente dividida entre cristãos e muçulmanos e o autoproclamado Estado Islâmico. Há um cuja religião preponderante é o budismo: Myanmar.
Também no Sri Lanka, que o Papa Francisco visitará em Janeiro próximo, onde o budismo domina, há intolerância, embora em menor medida. Associa-se ao budismo a ideia de paz, tolerância, sabedoria, compaixão, e pensa-se no Dalai Lama. Isto é verdade, mas é igualmente verdade que a liberdade religiosa está fortemente reprimida não só nestes dois países mas também noutros, embora em grau menos elevado, onde o budismo é dominante: Laos, Camboja, Butão, Mongólia.
Como já foi dito, também o Relatório considera que, em vários casos, os motivos para a repressão são sobretudo políticos, étnicos e culturais. Mas não se poderá negar a afirmação de um credo religioso contra os outros, como acontece de modo absolutamente claro no Estado Islâmico. Neste caso, a natureza religiosa da guerra brutal contra os "infiéis" é afirmada pela revista La Civiltà Cattolica: "A sua é uma guerra de religião e de aniquilamento. Instrumentaliza o poder da religião e não vice -versa." Não só os cristãos, os iazidis e judeus mas também outros irmãos muçulmanos, xiitas e alauítas, etc. são considerados "apóstatas", "porque não têm como meta o califado mundial, mas, quando muito, Estados nacionais governados pela sharia". Esta brutalidade chegou à África, com o grupo Boko Haram.
Evidentemente, face a um deus que legitimasse a crueldade cega e bruta, arrepiante, do Estado Islâmico, e a violência e o terrorismo em seu nome, só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
Já aqui escrevi sobre o KAICIID, sigla em inglês do Centro Internacional King Ab-dullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural. A sua sede é Viena, os fundadores, a Áustria, a Espanha e a Arábia Saudita, tendo o Vaticano como observador fundador e apoiante da iniciativa impulsionada pelo monarca saudita, que dá o nome à instituição. Em 19 de Novembro passado, da sua reunião resultou a Declaração United Against Violence in the Name of Religion, condenando, portanto, a violência em nome da religião. De louvar, claro, mas não se pode deixar de referir que a Arábia Saudita proíbe a prática de religiões não muçulmanas.
De regresso da sua visita à Turquia, também em Novembro, o Papa Francisco declarou, numa conferência de imprensa no avião, que "não se pode dizer que todos os muçulmanos são terroristas" e que "nós também temos cristãos fundamentalistas, eh?!" Mas pediu insistentemente aos líderes muçulmanos "uma condenação mundial" do terrorismo islâmico: "Seria bom que todos os líderes muçulmanos, políticos, religiosos, digam claramente que condenam isso, pois ajudaria a maioria do povo muçulmano. Todos necessitamos de uma condenação mundial." Se há islamofobia, também há cristianofobia: "Perseguem os cristãos no Médio Oriente como se quisessem que nada restasse de cristão."
Penso que, para a liberdade religiosa, há duas condições essenciais. Uma tem que ver com a leitura histórico-crítica dos textos sagrados. A outra exige a separação do Estado e da Igreja, da religião e da política. Sem um Estado confessionalmente neutro, laico, que garanta a liberdade religiosa de todos, continuará a capitis diminutio (perda de direitos) dos cidadãos que não sigam a religião oficial do Estado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 13 de Dezembro de 2014

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A AVÓ EUROPA DE FRANCISCO*

A Europa mítica é uma princesa de Tiro. Como que a lembrar que é a Eurásia, a Europa ecuménica, de fronteiras imprecisas. Zeus disfarçado de touro aproximou-se da bela princesa fenícia, deixando que o acariciasse e trepasse para o seu dorso. Entrou então pelo mar, dirigindo Eros o casal para Creta, onde fizeram amor. Foi a esta Europa, ao mesmo tempo divina e terrena, e agora em crise, envelhecida e sem confiança, que o Papa Francisco se dirigiu na semana passada com dois discursos: ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa. 1. Francisco quis deixar "uma mensagem de esperança e de alento" a uma Europa que, num mundo cada vez mais global, é cada vez menos "eurocêntrica" e dá a impressão de "cansaço e envelhecimento", a ponto de "os grandes ideais que a inspiraram parecerem ter perdido força de atracção".

No centro do ambicioso projecto europeu tem de estar o homem, "não tanto como cidadão ou sujeito económico", mas como "pessoa dotada de uma dignidade transcendente". A promoção desta dignidade significa reconhecer que a pessoa possui "direitos inalienáveis". Mas o homem não é uma "mó- nada", é um ser em relação, de tal modo que direitos e deveres de cada um estão em conexão com os dos outros e com o bem comum.
Denunciou a "doença da solidão", que atinge velhos, pobres, imigrantes, jovens sem referências, advertindo que "o ser humano corre o risco de ser reduzido a uma mera engrenagem de um mecanismo que o trata como um simples bem de consumo para ser utilizado". Este equívoco surge quando prevalece "a absolutização da técnica", que acaba por causar "uma confusão entre os fins e os meios", e é o resultado da "cultura do descarte", do "consumismo exasperado", da "globalização da indiferença".
No famoso fresco de Rafael, que se encontra no Vaticano e representa a Escola de Atenas, no qual Platão aponta para o alto e Aristóteles estende a mão para diante e para o chão, vê "uma imagem que descreve bem a Europa na sua história, feita de um permanente encontro entre o céu e a terra, onde o céu indica a abertura ao transcendente, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os problemas".
Entre os problemas, lembrou a importância fundamental da família, "as numerosas injustiças e perseguições que sofrem as minorias religiosas e particularmente cristãs", "é hora de favorecer as políticas de emprego e voltar a dar-lhe dignidade", a questão migratória: "não se pode tolerar que o Mediterrâneo se torne um grande cemitério", a ecologia: devemos ser "guardiões" e "não donos" da natureza.
"Chegou a hora de construir juntos a Europa que não gire à volta da economia mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis", que abrace com valentia o seu passado, com o seu "património cristão", e olhe "com confiança o futuro", vivendo "o presente com esperança", abandonando "a ideia de uma Europa atemorizada". Para promover "uma Europa protagonista, transmissora de ciência, arte, música, valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais, que caminha sobre a terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a humanidade".

2. 0 que Francisco pensa de verdade sobre a Europa disse-o, em Outubro, ao Conselho das Conferências Episcopais da Europa, ao abandonar o discurso oficial e falar ex corde.
"Que se passa hoje na Europa? Continua a ser a nossa mãe Europa ou é a avó Europa? É ainda fecunda? É estéril? Por outro lado, esta Europa cometeu algum pecado. Temos de dizê-lo com amor: não reconheceu uma das suas raízes." Por isso, já não se sente cristã "ou sente-se cristã um pouco às escondidas, mas não quer reconhecer esta raiz europeia".
A Europa "está a ser invadida". "Será a segunda invasão dos bárbaros, não sei. Agora, sente esta 'invasão' entre aspas, de gente que vem à procura de trabalho, liberdade e uma vida melhor."
"A Europa está ferida." E fala da crise e do desemprego, sobretudo dos jovens. "A Europa descartou as crianças. De modo um pouco triunfal. Recordo que quando era estudante num país as clínicas que faziam abortos depois mandavam o resultado para fábricas de cosméticos. A beleza da maquilhagem feita com o sangue dos inocentes."
A Europa está cheia de velhos. E "cansada de desorientação". "Eu não quero ser pessimista, mas digamos a verdade: depois da comida, da roupa e da saúde, quais são os gastos mais importantes? A cosmética e os animais de estimação. Não têm filhos, mas afecto ao gatinho, ao cãozinho. É este o segundo gasto depois dos três principais. O terceiro é toda a indústria para favorecer o prazer sexual. Os nossos jovens sentem isto, vêem isto, vivem isto."
Mas não é o fim, pois a Europa "tem muitos recursos para andar para diante. E o recurso maior é a pessoa de Jesus". No meio das feridas, esta é "a nossa missão: pregar Jesus Cristo, sem vergonha".
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 6 de Dezembro de 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O LAMAÇAL: ÉTICA E POLÍTICA*

1. Tenho aqui escrito muitas vezes que, ao contrário do q ue se pensa, fé e acreditar não são em primeiro lugar categorias religiosas. Trata-se do fundamental da existência, no sentido de que, sem fé, crédito, confiança, ninguém pode viver bem. O que mais falta faz no país não é precisamente a confiança e o crédito? A nossa vida está baseada, em todos os domínios, na confiança (vem de fides, fé) e no crédito (vem de credere, crer, acreditar) que damos aos outros e à vida e que eles nos dão a nós, de tal modo que podemos crer e confiar em nós próprios, abrindo futuro pessoal e colectivo.
Assim, a crise em que o país está mergulhado é a pior, porque minou a confiança. No meio deste lamaçal, em quem se pode confiar?


2. A nossa tragédia está aqui: perdemos o essencial. E o essencial somos nós mesmos. Os seres humanos somos constitutivamen- te abertos à questão ética. De facto, dada a neotenia - nascemos por fazer-, a nossa tarefa essencial, diria mesmo a única, no mundo é fazermo- -nos a nós próprios. Sendo livres, fazermo-nos moralmente bem. Temos a experiência de sermos dados a nós próprios. Assim, somos donos e senhores de nós mesmos - essa é a experiência radical da liberdade -, de tal modo que, no fim, desta tarefa de nos fazermos - e é sempre o que está acontecer: fazendo o que fazemos, estamos a fazer-nos a nós próprios - tanto pode resultar uma obra de arte como uma porcaria (desculpe-se a expressão, mas ela é a que traduz a realidade). Isto, individualmente e também colectivamente, pois fazemo-nos sempre em comunidade e sociedade. Desgraçadamente, é a segunda alternativa que nos está a acontecer.

3. 0 que é que se impõe então com toda a urgência? Uma conversão moral. Cada uma, cada um, tem de assumir-se a si mesma, a si mesmo, na sua intrínseca tarefa: realizar-se na dignidade. Temos de habitar o mundo eticamente (um dos étimos da nossa palavra ética é êthos, que significa morada).
Precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele o monopólio da violência, porque não somos todos éticos.
Se todos fossem éticos, segundo a ética desinteressada, no quadro do fazer-se bem moralmente a si próprio, não era necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir de modo não violento os conflitos. Como escreve o filósofo A. Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas, de prisões.
"Não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico"
Deste modo, entende-se que ética e política não se identificam nem confundem, mas os seus objectivos são os mesmos: a realização verdadeiramente humana da humanidade de todos. Mas, precisamente aqui, uma vez que a política aparece como necessária, porque não somos éticos, surge o núcleo da questão: como encontrar políticos que sejam precisamente políticos, mas com ética?
Retomo o que já aqui tenho defendido. O grande desafio do nosso tempo é a formação ética, moral (uso aqui os termos como idênticos, sem as distinções que tecnicamente se imporiam), para os valores, que não se esgotam nem se identificam com o dinheiro e a riqueza, embora o valor dinheiro seja necessário. Quando isso não acontece, remetemos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais... Ora, neste quadro, fica-se confrontado com questões temíveis. Primeira: não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico. Depois, seja como for, sem ética assumida - e acrescentaria: sem referência religiosa ao Absoluto -, fica apenas a lei e a sua sanção, o medo e a esperança de não se ser apanhado. Por exemplo, corrompe-se, é-se corrupto, não se paga impostos, precisamente na esperança de não se ser apanhado: se isso acontecer, tanto pior... De qualquer forma, nesta lógica, sem valores éticos assumidos, acaba, no limite, por ser necessário colocar um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei, mas, como os polícias também são humanos, é preciso pôr um polícia junto de cada polícia. O totalitarismo no meio de um lamaçal! Juvenal viu bem: Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes?  (A guarda  guarda-nos. Quem guardará a própria guarda?).

4. É extraordinário, não deixando mesmo de ser paradoxal e estranho, que, precisamente no meio do lamaçal em que nos afundamos, seja notícia três trabalhadores anónimos da recolha de lixo da Câmara da Póvoa de Varzim terem, honradamente, entregado no respectivo serviço a quantia de 4400 e tal euros que encontraram num contentor. E ouvi-os dizer, na sua simplicidade honrada: foi isto que nos ensinaram em casa e na escola, quando éramos miúdos.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 29 de Novembro de 2014
Site Meter