terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A DIGNIDADE DE SER ATEU*

A liberdade religiosa é um direito humano fundamental. Poder-se-ia mesmo dizer que é o direito mais fundamental, na base de todos os outros direitos, na medida em que, estando referido ao infinito-liberdade de acreditar em Deus ou não, seguir esta religião ou aquela ou nenhuma, mudar de religião -, mostra a transcendente dignidade humana no confronto com o infinito.
Nem sempre houve esta compreensão, também entre os cristãos e nomeadamente na Igreja Católica. Quando se olha para a história, encontramos, neste domínio, um estendal de miséria e vergonha. Houve guerras religiosas, Inquisição, assassínios, prisões, conversões sob ameaça de morte, tudo por causa de interesses de domínio: religioso, político, económico, geoestratégico.
Felizmente, há hoje no Ocidente a afirmação clara do direito à liberdade religiosa, garantida por Estados não confessionais, dentro da separação do Estado e das Igrejas. E hoje, de facto, o cristianismo é, de longe, a religião mais perseguida no mundo. Veja-se o volumoso "Livro negro da condição dos cristãos no mundo", recentemente publicado.

Desgraçadamente, o Relatório 2014 da Ajuda à Igreja que Sofre sobre as violações da liberdade religiosa no mundo é tudo menos animador. Entre os vinte países com a mais alta taxa de intolerância religiosa, há doze que pioraram no último ano: Iraque, Líbia, Nigéria, Paquistão, Síria, Sudão, Azerbaijão, China, Egipto, República Centro-Africana, Usbequistão, Myanmar, e quinze têm um regime de governo muçulmano, a que se deve juntar a Nigéria, religiosamente dividida entre cristãos e muçulmanos e o autoproclamado Estado Islâmico. Há um cuja religião preponderante é o budismo: Myanmar.
Também no Sri Lanka, que o Papa Francisco visitará em Janeiro próximo, onde o budismo domina, há intolerância, embora em menor medida. Associa-se ao budismo a ideia de paz, tolerância, sabedoria, compaixão, e pensa-se no Dalai Lama. Isto é verdade, mas é igualmente verdade que a liberdade religiosa está fortemente reprimida não só nestes dois países mas também noutros, embora em grau menos elevado, onde o budismo é dominante: Laos, Camboja, Butão, Mongólia.
Como já foi dito, também o Relatório considera que, em vários casos, os motivos para a repressão são sobretudo políticos, étnicos e culturais. Mas não se poderá negar a afirmação de um credo religioso contra os outros, como acontece de modo absolutamente claro no Estado Islâmico. Neste caso, a natureza religiosa da guerra brutal contra os "infiéis" é afirmada pela revista La Civiltà Cattolica: "A sua é uma guerra de religião e de aniquilamento. Instrumentaliza o poder da religião e não vice -versa." Não só os cristãos, os iazidis e judeus mas também outros irmãos muçulmanos, xiitas e alauítas, etc. são considerados "apóstatas", "porque não têm como meta o califado mundial, mas, quando muito, Estados nacionais governados pela sharia". Esta brutalidade chegou à África, com o grupo Boko Haram.
Evidentemente, face a um deus que legitimasse a crueldade cega e bruta, arrepiante, do Estado Islâmico, e a violência e o terrorismo em seu nome, só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
Já aqui escrevi sobre o KAICIID, sigla em inglês do Centro Internacional King Ab-dullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural. A sua sede é Viena, os fundadores, a Áustria, a Espanha e a Arábia Saudita, tendo o Vaticano como observador fundador e apoiante da iniciativa impulsionada pelo monarca saudita, que dá o nome à instituição. Em 19 de Novembro passado, da sua reunião resultou a Declaração United Against Violence in the Name of Religion, condenando, portanto, a violência em nome da religião. De louvar, claro, mas não se pode deixar de referir que a Arábia Saudita proíbe a prática de religiões não muçulmanas.
De regresso da sua visita à Turquia, também em Novembro, o Papa Francisco declarou, numa conferência de imprensa no avião, que "não se pode dizer que todos os muçulmanos são terroristas" e que "nós também temos cristãos fundamentalistas, eh?!" Mas pediu insistentemente aos líderes muçulmanos "uma condenação mundial" do terrorismo islâmico: "Seria bom que todos os líderes muçulmanos, políticos, religiosos, digam claramente que condenam isso, pois ajudaria a maioria do povo muçulmano. Todos necessitamos de uma condenação mundial." Se há islamofobia, também há cristianofobia: "Perseguem os cristãos no Médio Oriente como se quisessem que nada restasse de cristão."
Penso que, para a liberdade religiosa, há duas condições essenciais. Uma tem que ver com a leitura histórico-crítica dos textos sagrados. A outra exige a separação do Estado e da Igreja, da religião e da política. Sem um Estado confessionalmente neutro, laico, que garanta a liberdade religiosa de todos, continuará a capitis diminutio (perda de direitos) dos cidadãos que não sigam a religião oficial do Estado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 13 de Dezembro de 2014
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