A propósito dos trágicos e bárbaros
acontecimentos em Paris
ficam aí algumas reflexões
1. Estamos confrontados com a questão do outro. Somos, por natureza,
sociais: fazemo-nos uns aos outros, a nossa identidade é sempre
atravessada pela alteridade. Mas o outro enquanto diferença é ao mesmo
tempo espaço de fascínio — quem não gosta de viajar para conhecer outros
povos, outras culturas? — e de perigo — o outro é o desconhecido
perante o qual é preciso prevenir-se.
Viveremos cada vez mais em sociedades multiculturais e multi-religiosas.
Aí está a riqueza da diferença, mas, simultaneamente, o sobressalto
dessa mesma diferença. Isto impõe o conhecimento mútuo, o diálogo
intercultural e inter-religioso. É cada vez mais claro, como há muito
repete o teólogo Hans Küng: não haverá paz entre as nações sem paz entre
as religiões; não haverá paz entre as religiões sem o seu conhecimento e
o diálogo entre elas; urge um consenso ético mínimo global.
2. A liberdade de expressão é um direito fundamental e uma conquista
civilizacional a que se não pode renunciar. Também no domínio religioso:
estou, por exemplo, convencido de que, se a liberdade de pensamento e
de expressão na Igreja Católica não estivesse tão tolhida, ela, Igreja,
não teria tido os problemas e até infâmias por que tem passado.
Face à crítica da religião, até com cartoons satíricos, patetas e
boçais, não fico aflito. Já Kant escreveu que a religião, apesar da sua
majestade, não está imune à crítica. Distingo muito bem entre o Sagrado,
Deus em si mesmo, que nós nunca atingimos — os cartoonistas também não —
e as nossas formas humanas de nos relacionarmos com Ele. Ora, muitas
vezes, essas formas são ridículas, inumanas, supersticiosas, e os
críticos obrigam-nos a ver isso e a corrigir.
Evidentemente, quem critica deve ter o sentido das suas
responsabilidades quanto ao que faz e às suas consequências. Há críticas
patetas e boçais: elas ficam com os seus autores.
Por outro lado, quem se sente ofendido ou injuriado, ferido nos seus
direitos, tem o direito à defesa segundo a lei: protestando, organizando
manifestações, recorrendo aos tribunais. Não se pode é recorrer à
violência, ao terror que mata. Frente a um deus que legitimasse a
violência bruta, a degola, a violação, a decapitação, só haveria uma
atitude humanamente digna: ser ateu. Um deus assim seria pior do que
nós, quando estamos de bem com a razão e a humanidade.
3. É sabido que também há fundamentalismo entre os cristãos, como
lembrou o Papa Francisco, e também os cristãos cometeram barbaridades
sem conta. De qualquer modo, aprenderam, também a partir dos
ensinamentos de Jesus, que é necessário ler criticamente os textos
sagrados, separar a religião e a política, criar Estados laicos, que
garantam a liberdade religiosa de todos, incluindo a dos ateus, e
resolver os diferendos e castigar os crimes, seguindo leis votadas em
Parlamentos pluralistas e democráticos.
4. Não creio que haja guerras e violência exclusivamente religiosas.
Aí, a religião servirá sobretudo para legitimar interesses outros:
políticos, económicos, geoestratégicos. Penso, por exemplo, que há
velhos ressentimentos do mundo muçulmano contra o Ocidente. Lá estão a
colonização, as cruzadas, a questão da Palestina, a invasão do Iraque e o
bombardeamento da Líbia e o caos que se seguiu, a falta de integração
daqueles e daquelas que vivem nos arrabaldes das cidades europeias. Isso
não justifica de modo nenhum o terror em nome de Deus, e impõe-se, por
exemplo, combater, também pela força das armas, o autoproclamado Estado
Islâmico, no quadro, evidentemente, do Direito Internacional. Mas dá que
pensar e obriga a agir.
5. Como dá que pensar que milhares de jovens europeus sejam aliciados
pelo jihadismo para combater nas fileiras do Estado Islâmico. O que é
que os move? Não será também porque, face ao vazio de valores, no quadro
de um consumismo pedante e do tédio gerado pelo hedonismo fácil, não
encontrando sentido, procuram uma grande causa, embora louca? Perante o
nada de valores de uma Europa descrente de si, decapitada pelo
materialismo, buscam no califado a senda da heroicidade e da salvação?
6. Quando vou a Viseu, passo pelo monumento ao bispo D. António Alves
Martins, meditando na sua afirmação sob a estátua: "A religião deve ser
como o sal na comida; nem muito nem pouco; só o preciso." Por outras
palavras, quanto à religião, nem de menos nem de mais. Estou convencido
de que, sem religião, isto é, sem a religação ao Mistério último, a vida
humana é mais pobre, acanhada, sem horizonte de transcendência e
sentido último. Mas espreita sempre o perigo do fanatismo, que pode
espalhar a pequenez, a humilhação e até a morte e o horror. O fanatismo,
desembocando no terrorismo, é o pior inimigo da religião na sua
verdade.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 17 de Janeiro de 2015