segunda-feira, 29 de junho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (3)*


Mandei dar umas pedradas por um meu afilhado no Assenso do Fornelo. Este homem escapou, porque lhe valeram as pernas.
Confesso também que roubei José Ribeiro de Amorim, do Vale. Tinha este um prédio rústico, chamado Cabreira com sua casa no meio, onde recolhia lenha. Sabia eu onde ele escondia a chave, e para fazer os meus magustos com uns pândegos como eu, roubava-lhe a lenha. Isto é ser ladrão.
O que,  porém, me magoa mais nesta hora é uma negra ingratidão que pratiquei para com o pobre serrano do Vale. Este homem possuía, no dito Vale, um prédio rústico fertilíssimo e de bom gosto. Ambicionei este terreno, e por isso falei-lhe para mo vender, e para o mover a vender-mo, prometi-lhe nunca lho tirar e de o conservar como caseiro enquanto ele vivesse. O pobre achava-se endividado.  Caiu em logro por   dois motivos: alentava a lisonjeira esperança de fabricar o prédio de meias enquanto fosse vivo; e fiava-se em mim, porque não me conhecia.  Por estas razões, vendeu-me o campo. O preço fi-lo eu; pilhei-lho por metade do que valia, e este meio preço paguei-lho às fornadas de milho e às meias moedas, que colhia de sermões. Mal pago o campo e havido o título, expulsei-o do prédio. De pobre que já era, reduzi-o a um pobre mais pobre;  e não só o expulsei do campo, mas até o degradei com três filhas de Portugal com um juramento falso que dei contra eles no tribunal de Resende. Coitado! Teve de mudar-se com as filhas para a África, onde lhe cavei a sepultura!! Ó pobre serrano, quando te viste nas costas da África debaixo desse sol abrasador, mormente quando  te viste a braços com a cruel e desumana parca.  E ali aberta a negra cova, que te havia de recolher, dizias: ali está a medalha que o Abade de Barrô me deu pela honra das minhas filhas, ali está o preço das minhas terras, que me comprou e não pagou.
E vós, ó tristes serranos a quem eu,  como ministro do Senhor,  devia dirigir pela carreira da virtude e a quem, como cavalo sem freio, desencaminhei e perverti, perdoai-me o meu brutal procedimento e os meus crimes para convosco, para que não sejam a minha morada as catacumbas do inferno.
Desventuradas mulheres, cá, à distância de inúmeros quilómetros, vou falar convosco, em tempos minhas amigas. Segundo as acertadas medidas da Divina Providência, é muito raro encontrar-se um ente que tenha a propensão para todas as artes essenciais. Eu, infelizmente, sou sábio na opinião dos que não sabem avaliar-me: passo por um filósofo, e não sou mais que um ímpio; por um retórico, mas sem regra; teólogo no erro; canonista na vaidade; moralista no desconcerto, na mentira, na intriga, na murmuração e na calúnia; um mestre. E tal é a arte para que nasci.
Para ostentar sabedoria a quem me não conhecia,  asseverava que lera isto ou aquilo neste ou naquele livro sem o ter nem comprar nas livrarias. Ensinava o que a minha razão desvairada me ditava, embriagando-me na mentira para que tenho engenho e arte.
 *Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
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