quarta-feira, 22 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (11)*


Eu fui o mestre dos Padres de Paus, fui o que lhes ensinei cantochão, e também fui o seu mestre de cerimónias e ainda de Moral…
Todos os anos, na véspera de Natal, visito no Fornelo, onde vivo, uns cinco ou seis pobres, que aqui há, e a cada um dou uma quarta de bacalhau, e na Feira Nova, em casa da Brasileira onde vou comer depois da minha missa, espalho pelos pobres umas três ou quatro moedas de cinco réis.  Assim,  numa parte com seis quartas de bacalhau e na outra com três ou quatro moedas de cinco réis,  sou chamado honrado e caritativo. Ah! Que demência se apoderou de ti!! Tu não vês que eu sou um murmurador, um caluniador, de vivos e mortos, um intriguista, um invejoso, cujas qualidades se não compadecem com a caridade?
Ah! Que só tendes habilidade para despejar copos e nenhuma para conhecer os homens!!
Eu tenho tentos defeitos e tais que, se as autoridades eclesiásticas tivessem deles conhecimento, já tinha sido suspenso, deposto e degradado!! Tenho pecados tais que a Igreja nunca há-de rezar por mim. Na minha terceira confissão, que hei-de fazer, vós vereis então quem tem sido este impostor, que só para o mal tem talento!!
Ai de mim!...Tenho sido um cavalo sem freio no precipício!!
Perdoai-me, meu Deus. A religião, que com o vosso sangue plantastes no mundo, lucraria muito se eu nunca fosse Padre…
Perdoai-me por esse sangue que derramastes em jorros pela terra…
Perdoai-me, eu vos peço, pelo amor de Deus, ó meus irmãos,  por mim tão ofendidos…
Ó serrano, confesso que te roubei e,  com juramento falso que dei contra ti, expulsei-te das veigas risonhas, dos amenos prados de Portugal para essa inóspita e insalubre região de África. Perdoa-me.
Infelizes serranas,  que   por minha causa sofreis tão tormentoso exílio na vossa idade vigorosa e florescente, perdoai-me, e adeus até ao dia do juízo.
Nobres senhores da casa da Soenga, que filhos de pais ilustres e recebendo deles a nobreza que tinham, a pouco fostes arrastados pelos caminhos do opróbrio por mim, e por outros como eu, perdoai-me também.
Jovens, que iludidos por mim desertastes do exército sagrado de Jesus, moças que transviei do caminho da honra e da virtude, perdoai-me.
Perdoai-me também mortos, ó mortos; esquecido de que um finado tem tanto jus à sua boa fama como o vivo, tenho faltado à caridade para convosco. As murmurações e calúnias,  que tenho dirigido a vossos veneráveis ossos, são as missas de réquiem que tenho celebrado pelo vosso eterno descanso. Perdoai-me.
Adeus, caros leitores  até  breve. Salus integra, tranquilla pax, multum auri, et longa vita sint vobis. Amen
Paus, 25 de Novembro de 1889
O Abade de Barrô

Pe. Eugénio César d’Azevedo
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (10)*


Não é também verdade que o Pe. Diogo roubasse um Feliciano Monteiro, do Vale, vulgo o Feliciano. Eu, seu vizinho, sei que o Pe. Diogo comprou ao Feliciano um prédio, que justou por cem mil réis; que, tendo o vendedor recebido quase todo o preço da venda, se recusou a fazer o título sem que o Pe. Diogo lhe desse 30:000 réis a mais; e que finalmente concordaram que o Pe. Diogo lhe desse 15:000 réis. Fez-se o documento, e o Pe. Diogo deu ao vendedor,  além dos cem mil réis por que ajustaram, mais 15:000 réis, do que são testemunhas o Sr. Comendador Filipe José Rodrigues, José Rodrigues, da Eira-Velha. Não admira que o Feliciano calunie o Pe. Diogo, quem o conhece. Ouvi um trecho de sua vida.  Um dia este Feliciano, ainda moço, sofreu das mãos de seu pai um castigo, e o filho protestou vingar-se do pai, e assim fez.
Tinha o pai uma horta a partir com outra, pertencente ao Pe. António Pedro dos Santos, então Cura da freguesia, e o filho numa noite cortou todos os arbustos na horta do Padre, lembrando-se que este culpava no corte das árvores o seu pai, como culpou. Este Feliciano, que estando casado, possuía bastantes terrenos e ganhava pelo ofício de oleiro muito dinheiro, não fez caso de sua mãe e esta seria vítima da fome, se lhe não valesse outro filho. Nunca deu uma fatia de pão a um filho, que teve de uma mulher solteira, e vendeu seus terrenos para os não herdar uma filha, que tem legítima e muito pobre e com muitos filhos. Logo não é assombroso que um homenzinho assim levante uma calúnia a um inocente, mas é admirável que eu, que conheço este demónio, e sei que o Pe. Diogo o não roubou, o certifique ao público.
Pouco me resta para dizer por esta vez. Antes,  porém, que termine, digo e direi sempre que o Padre Diogo,   que  como homem há-de ter defeitos, como sacerdote imperfeições e como professor faltas, não é nem foi ladrão nem matador; logo, comparando-o nós no princípio dos nossos terceiros panfletos, cuja matéria é a mesma dos outros, com o tigre, o leão, o leopardo e a pantera, mostrámos que não temos ideia da história natural. Eu nunca a estudei, verdade e verdade. Cumpre-me também confessar que a loja, que me elegeu seu chefe nos papelitos a que me referi, diz que eu fui o mestre de todos os Padres de Paus, e que me não falta o invejável predicado de caritativo. Acharíeis estas expressões num estilo inchado? São estas verdades puras. 
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (9)*


Cá torna o Francisco Cardoso d’Azevedo, de Vilar de Barrô, o tabelião de notas. O Pe. Diogo não roubou a este vulto 80:000 réis, como ele diz, e nós o transmitimos ao público. Ele não lhe roubou nem uma pena, porque roubar uma pena a um escrivão é um pecado grave.
Para José Rodrigues Paulino embarcar recorreu ao Pe. Diogo para lhe arranjar dinheiro, e este Padre tirou-lhe 70:000 réis a juro em Ferreirós em casa de José Rodrigues Caçador, e nunca ocupou o Sr. Francisco Cardoso d’Azevedo. Mas vem cá, Francisco, se tu abonaste no Porto a José Rodrigues Paulino, porque não exigiste dele um título? Quando tu principiaste a pedir ao Pe. Diogo esta dívida, ele escreveu para o Brasil ao Paulino, perguntando-lhe se era verdade dever-te esta quantia, e ele numa carta que enviou ao Pe. Diogo, e que este conserva, diz que nada te deve e que tu és um ladrão. Como queres tu que o Pe. Diogo te pague,  sem te dever tal dinheiro? Ó Francisco,  nem sempre se pode fazer do direito torto e do torto direito.
É como o Sr. José Maria Pinto de Meneses, da Feira Nova, da freguesia de S. Martinho de Mouros…Quem diria que este meu amigo que, sem merecimentos, quer passar por um cidadão honrado, também é um caluniador? Já lá vão bastantes anos que Lino José Rodrigues, sobrinho do Pe. Diogo, pediu a este que lhe abonasse na loja daquele Sr. Meneses um fato. O Pe. Diogo deu-lhe uma carta em que pedia ao Sr. José Maria Pinto de Meneses que fiasse ao sobrinho uma roupa até 4:500 réis. Passado algum tempo, o Pe. Diogo, vendo que o seu sobrinho por muito pobre não pagava, dirigiu-se ao Sr. Meneses e deu-lhe 4:500 réis. O Sr. Meneses, abrindo lá o seu cartapácio, disse ao Pe. Diogo: “ Você deve aqui 11:800 réis,  e este é o abono que fez a seu sobrinho”.  “Mostre a carta, que lhe dirigi”, disse o Pe. Diogo. O Sr. Meneses não apresentou a carta, porque não lhe fazia conta. Depois o dito Lino deu-lhe por vezes algum dinheiro, e hoje dever-lhe-á uns dois ou três mil réis. Eis aqui em detalhe toda a história, e à vista dela o Sr. José Maria Pinto de Meneses poderá queixar-se que o Pe. Diogo o roubou? Entendo que o não deve fazer, sem se colocar na classe mais degradante dos homens. O Pe. Diogo não roubou porque lhe pagou quanto tinha abonado; ele é que roubou o Padre, porque o calunia.
E menos o Pe. Diogo roubou o José Monteiro de Cardoso, como sem vergonha publicamos no nosso último panfleto, composto por uns elementos de retórica dados à luz pelo José Terra da Feira, de Fazamões, e ilustrados pelo mesmo José Monteiro. Este homem, tantas vezes ensarilhado pelo diabo, tantas vencido por ele e outras tantas vezes dele vencedor, é meu compadre e amigo, e serve-se do meu dinheiro. Como é muito grato, quis pagar-me os meus favores, arranjando também a sua calúnia, que me ajudou a encher as colunas do meu panfleto. 
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (8)*



 Mas para o mal temos muita habilidade. Dissemos que o Pe. Diogo tem em casa uma amásia, que trouxe de Feirão. É falso.
Sua, nunca assaz chorada mãe, nunca teve criada até à idade de 78 anos. Aqui perdeu as forças e sofria um pequeno delírio. Por isso, seus filhos tomaram então uma servente para acompanhar a pobre velha na amargura de seus dias derradeiros. Viveram unidas dez anos, tempo em que o Pe. Diogo viveu fora de casa, entregue ao ministério paroquial. Faleceu a mãe, e a sua criada caiu numa dupla enfermidade: dispepsia no estômago e padecimento do peito. Como não tem  bens nem pode trabalhar nem mendigar pelas portas o sustento, era vítima da negra fome se fosse expulsa. Não tem , portanto, uma amásia em casa, tem, sim, uma desgraçada a quem sustenta por esmola.
O Pe. Diogo não expôs filho algum, como lhe imputámos. Acusámo-lo de um crime que ele não cometeu e que talvez fosse indirectamente cometido por mim. Ouvi dizer que, aí pelo Arco, aparecera à porta de uma casa habitada um infante abandonado, mas não sei quem expôs o recém-nascido, nem o tal Casimiro argui o Pe. Diogo deste tão bárbaro procedimento. Se eu nos meus panfletos, de tantas cores, quantas os pintores sabem dar aos objectos que querem adornar, disse que o Pe. Diogo fora o que o mandara colocar, isto foi num acesso de raiva canina, que muitas vezes me combate. Esse menino era filho, não podia deixar de ser, de uma das mães a quem eu arranquei do coração a crença religiosa. Não foi uma, foram muitas as mulheres, que para chegar a meus depravados fins, e conseguir os meus danados instintos, materializei, ensinando-lhes os inconsequentes dogmas dos Maniqueus e Valdenses e negando-lhes a verdade da nossa santa religião. E estas pobres mulheres, educadas por mim   nos princípios erróneos da teologia pagã perverteram  outras.
Por direito eclesiástico são excluídas do sacerdócio as mulheres; e porque obrou assim a Igreja? É porque as mulheres, se fossem sacerdotisas, não tinham paciência nem força para calarem o que soubessem pela confissão. Por isso, foram excluídas.
As minhas amásias, ensinadas por mim, não se calaram, ensinaram a outras as minhas péssimas doutrinas: daqui o haverem tantas mães sem fé, e daqui tantos abandonos de crianças.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (7)*


Dissemos também “que Pe. Diogo, suspenso de pregar e confessar, se asilara em casa de um Pe. Nicolau da Silva Dias, morador na Rua dos Rumulares, em Lisboa; que, enquanto este fez uma digressão, Pe. Diogo, arrombando-lhe a porta do quarto  e uma cómoda,  lhe roubara 1:500:000 réis, convencendo-o de que foram os larápios”.
Isto é uma fábula, e das suas entranhas saem as provas. Pe. Nicolau não podia acreditar que o conto e quinhentos mil réis fossem roubados pelos larápios, porque, se o roubo fosse praticado de dia, enquanto o Pe. Diogo foi passear, os ladrões tinham de arrombar a porta da rua. Qualquer casa em Lisboa tem, pelo menos, quatro andares, e cada um é habitado por seu inquilino. Na ala oposta da rua há lojas de comércio e artistas; o povo sempre em fluxo e refluxo, e além disto vigia sempre a polícia. Poderiam os larápios arrombar uma porta sem ser apercebidos? Se o roubo fosse feito de noite, Pe. Diogo, que estava dentro, e os criados ou criadas do Pe. Nicolau não haviam de gritar por socorro, e este não lhes era logo ministrado? Logo, se o Pe. Diogo dissesse a Pe. Nicolau que o dinheiro foi roubado pelos larápios, ele não o aceitava.
Os gazeteiros,  para encherem as colunas dos seus jornais, aproveitam os factos mais insignificantes, nem um furto de seis vinténs lhes escapa. Seria possível que não dessem notícia de um roubo de 1:500:000 réis, feito por um padre a outro padre, seu benfeitor? Pe. Diogo veio da Extremadura há vinte e um anos, e ninguém até hoje o arguiu de tal roubo. Só agora o arguimos eu e o professor. Notem os leitores: nos outros panfletos pintámos o roubo feito por um modo e, nestes últimos, por outro. Primeiro se pilha um mentiroso do que um coxo.
Mais calúnias. Dissemos “que o Pe. Diogo tentara matar o Pe. Geminiano José Gomes, então pároco de Paus, para se colar na igreja; que,  para tal fim,  embriagara certos indivíduos, e que de certo era vítima, se não lhe valessem o Pe. Eugénio César Azevedo, Pe. Joaquim António Dias de Oliveira e José Pinto, das Quintãs, e a sua prudência, fechando-se três dias em casa”.   
A falsidade desta asserção manifesta-se de todos os lados.
Pode-se crer que o Pe. Diogo mandasse matar o seu pároco por uns homens bêbados, num Domingo, na igreja ou no adro, em presença de tanta gente, ali reunida nesse dia para assistir à festividade de S. Sebastião? Se o Padre Diogo quisesse matar, ou mandar matar, o pároco, aproveitaria as trevas da noite para embeber o cruel punhal no sangue do seu colega, e assim não se sabia qual a mão assassina.
O Bispo diocesano colaria nesta igreja um padre que tivesse morto o seu pároco, e o povo não se oporia a uma tal apresentação? Se por ventura a morte fosse mandada fazer, como dissemos, por homens bêbados, nós, os três, que afirmamos, lhe valemos, que seríamos contra homens robustos, armados e dispostos para a sangrenta empresa? Desapareceríamos diante deles, como o pó diante da face do vento.
E o ódio do Pe. Diogo contra o seu pároco, ódio que pintamos com as tintas mais carregadas, podia extinguir-se nos três dias em que o pároco se fechou na sua residência?
Na verdade, um homem,  dotado de um talento medíocre, conhece à primeira vista que ninguém, dotado de razão, planeava assim um assassinato. E nós, pobres de filosofia, nem nos recordamos que nossos papelitos haviam de subir às mãos de leitores hábeis, de homens de lógica, que nos haviam de censurar nossos erros, asneiras, brutalidades, burricadas, cavaladas e absurdos!!!...
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (6)*


Cúmulo da malvadez.
Atestámos “que  Pe. Diogo, dizendo missa há pouco, espancara Maria Piôrra e que ela daí a pouco era cadáver”.
Se Pe. Diogo, ou outrem, praticasse um acto tão desumano e das pancadas resultasse a morte da espancada, o Ministério, ainda que não houvesse testemunhas oculares, procedia ex officio a um exame a um exame e corpo de delito. Mas no arquivo do registo criminal não apareceu esse documento.
Se nós soubemos desse crime, porque não acusamos seu autor, sendo nós tão inimigos seus? Porque nos não oferecemos para testemunhas? Para que deixámos impune um réu do maior dos crimes?
Além disto Pe. Diogo diz missa há 36 anos, e a dita Piôrra faleceu há pouco e de morte natural.
Demais a mais, de 1853, ano em que Pe. Diogo recebeu a sagrada ordem de presbítero,  ninguém acusou este Eclesiástico de um tal crime e só agora é arguido, e só por nós, porque eu sou o abade de Barrô, e o outro o professor de S. Martinho de Mouros…
Queixámo-nos “que Pe. Diogo convidara Manuel da Silva Paiva para me assassinar e que, não se prestando este a praticar o acto, encarregara esta empresa a Assenso do Fornelo para se colar na então minha igreja”.
Ó professor com quem nos compararemos? Os sacerdotes da Judeia, que semelhantes ao demónio, que sem proveito faz mal, devorados da inveja desse cruel  abutre que lhes roía as medulas para darem a morte a Jesus, o mataram primeiro com a espada da língua, seriam piores que eu e tu? Meus caros leitores, escutai agora a verdade:
Nos meus princípios vivia eu, como pároco de Paus, na casa da residência paroquial, nas Lages. Esta pobre casa era a toda a hora assaltada por essas belezas, que eu amava. Comiam-me tudo. Não me escapava o pão da giga nem broas do forno, levavam-me as batatas lá do canto da sala, a carninha da salgadeira, nem me deixavam os lençóis, e nem os meiotes. Vi-me pobre, e mal vestido de cotim, não via dez réis. Assentei então fugir desta casa, como fugi, e fui abrigar-me no Fornelo, na minha casa paterna.
Como meus fregueses se queixavam de mim por eu não residir ao pé da igreja, para me desculpar, principiei a dizer que me tinham feito esperas para me matarem e que, por esse motivo, me retirara. Nessa ocasião não culpei ninguém. Agora quis matar moralmente o Pe. Diogo, inventando para esse fim a matéria que pude: sim, disse que ele me mandara matar, quando o Pe. Diogo não era, nem é capaz de matar um cão, esse maior amigo do homem, o símbolo da gratidão, da felicidade e do amor.
Inventei também   que este padre atentara contra a vida de Filipe José Rodrigues. Pe Diogo José Rodrigues, se lhe dessem o ceptro de todo o globo terráqueo, que habitamos e com ele todas as riquezas, não arrancava a vida nem a um seu inimigo, e muito menos ao Sr. Filipe, porque é seu irmão e amigo e cuja vida preza tanto como a sua.
Dissemos que o Pe. Diogo intrigara o pároco da freguesia para onde foi nos subúrbios de Lisboa.
A freguesia em que o Pe. Diogo esteve é Nossa Senhora dos Prazeres d’Aldeia Galega da Merceana, concelho de Alenquer, à distância de Lisboa  de dez léguas, e o Pároco, que tem o título de Prior, é dos arrabaldes de Braga. Para fazerdes uma ideia deste Padre apresentar-vos-ei uma página da sua vida. Ei-la: tinha ele um jumento, que era de uma cor muito pretinha, corpulento, vivo e fino. O Padre tratava muito mal o pobre bruto, e este não sabia como havia de fazer a vontade ao Padre, por que este não o sabia dirigir. Numa bela manhã apareceu morto na estrebaria o animalejo, muito inchado, com a boca aberta e dentes arreganhados. O Padre pega de uma cachamorra e descarrega pancadas sem número sobre o ventre do orelhudo, que foi infeliz na vida e na morte. Como o burro estava muito inchado, as bastonadas produziram um eco como as dos tambores. As mulheres, pensando que o Prior tinha em casa algum descante, correram para lá apressadas. Chegando e vendo o pároco a descarregar cachamorradas no jumento cadáver, perguntaram-lhe a razão, por que assim tratava o triste animal, e ele respondeu “pois este diabo nunca me fez a vontade em vida e ainda agora morre a rir-se e a fazer escárnio de mim”.
Tal é a lógica do Padre e quem assim pensa não admira que tenha uma indisposição com um padre qualquer, e que alguém a tenha com ele.
É certo que este Padre e o Pe. Aniceto Rodrigues d’Oliveira não eram amigos do P.e Diogo, e o Pároco d’Aldeia-Galega escreveu-me uma carta perguntando-me qual fora a conduta do Pe. Diogo nesta terra. Se lá tivessem matéria para o suspenderem não lhes era necessário vir aqui buscá-la.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (5)*


Por mil insídias, por mil intrigas, por manejos mil, um há seis anos e outro há mais de trinta, pretendemos enterrar no túmulo do opróbrio o filho, não escapando a mãe, que nunca nos ofendeu, ao nosso furor tigrino.
Dissemos em nossos panfletos que o Pe. Diogo descendera dos mais afamados larápios de Paus e que sua mãe, além de ser amestrada na ladroíce, foi de tal forma prostituta que, sendo eles quatro irmãos, nenhum pode com verdade dizer qual foi seu pai.
Empurrar, depois de morta, uma mulher que nunca foi acusada   de furto, porque nada roubou e provou a paternidade de seus filhos, tanto que herdaram de seus pais.  Lacerar a honra e a reputação daqueles, qui ex hoc saeculo transierunt, e por isso já não podem defender-se, isto é só próprio de quem não tem educação nem caridade, nem piedade, nem crença religiosa. Isto é só próprio de mações!! E os mações que mais diriam ou fariam? Se Josefa Maria, mãe do Pe. Diogo e Pe. José,  pudesse alevantar-se da vala cerrada da sua sepultura, gritaria contra o insulto póstumo que nós dirigimos a seus ossos.  E os filhos, se nós, os covardes, nos assinássemos, vingariam, assaz em demasia, pelas leis, tantas calúnias estudadas contra uma finada, que foi dotada de magnânimas virtudes. Se Josefa Maria, solteira, teve um lapso contra o sexto preceito do decálogo, que fez ela, que eu em maior escala não praticasse? Eu, que desde os 12 anos prostituí tantas donzelas, adulterei com mulheres casadas e abusei de muitas viúvas, sendo um Padre, um Pároco e um pregador? E ainda hoje, sendo um “candelho”, ando amancebado!!
E tu, ó professor, meu dilecto discípulo, hipócrita, vês o argueiro no olho do teu próximo e não vês uma trave no teu? Tu, que sendo casado com uma mulher católica, casaste com outra civilmente para  lhe apanhares os 4 contos de réis?!
Afirmamos que Pe. Diogo roubara uma navalha ao honrado Abade de Felgueiras. Mentimos. Este abade, quando cursou em Lamego as aulas, perdeu uma navalha, que custaria 200 réis. Passado algum tempo, Pe. Diogo achou-a e entregou-lha em sua casa, em Felgueiras, em 1852, pouco depois das exéquias de António Joaquim Cardoso, de Cardoso, freguesia de São Martinho de Mouros. Não lha roubou, achou-lha e restituiu-lha. Se o abade disse ao meu discípulo que Pe. Diogo lhe roubou a navalha, aprecia pouco a honra de um seu colega, parente e a sua própria. Continuam as calúnias.
Asseverámos que o Pe. Diogo escrevera umas cartas “aleivosíssimas ao Pe. Gil, a Bento José da Silva e a outros”. Pe. Diogo e Pe. Gil foram desde crianças amigos e ainda hoje o são, e nesta amizade mútua não tem havido eclipse. Enquanto a Bento José da Silva, este recebeu uma carta sarcástica que foi escrita por um estudante ditada por outro e remetida ao dito Bento. Passado algum tempo, o escritor revelou o segredo e, como a carta indirectamente me feria mais a mim do que a Bento por eu andar nesse tempo amancebado com uma filha dele, fui dizer ao mesmo Bento quem tinha ditado e quem tinha escrito a carta e,  sem o saber, ajuntei que o Pe. Diogo fora o principal autor da carta. Eu costumei sempre dar juramentos falsos. O Bento não chamou o escritor a uma polícia correccional por ele lhe ter revelado quem tinha forjado a carta. Também não puniu o ditador, porque a sua família deu dinheiro ao Bento, e só quis castigar o Pe. Diogo, porque eu lhe pedi e me oferecei como testemunha e, por isso o Bento chamou-o a uma polícia, mas não se provou que o Pe. Diogo fora cúmplice. Conheço os dois estudantes que hoje são padres e sei que o Pe. Diogo não concorreu para essa carta. Porque disse que o Pe. Diogo mandara cartas aleivosíssimas ao Bento? Porque sou mau e invejoso.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (4)*


Diz-nos a dialéctica que todo o ente tem um fim da sua criação, mas o meu fim é procurar a ruína moral da sociedade. Tendo ensinado muitos discípulos, o mais hábil, o mais talentoso foi José Pinto da Fonseca, professor em S. Martinho de Mouros. Este meu aluno aprendeu tanto que até fez um casamento civil.
Diz ele nos nossos segundos papeluchos que, se promoveu tal casamento, é porque o Buena-Flor lhe prometera receber,  depois, a mulher catolicamente. Ó professor, não mintas. Nessa empresa só te lembrava o dinheiro do Buena-Flor, e o que menos te lembrava era a sua alma e Deus. Saiu melhor o discípulo que o mestre. Tu arranjas daquelas que te dão aos quatro contos, e eu só daquelas que,  sem me  varrerem o pó das salas,  me alimpam tudo. Sim, quando era novo como tu agora e tinha como Salomão as minhas mil concubinas, não tinha nem dez réis. O que me valeu foi casar com a minha Josefa: agora sim, já tenho junto alguns cobres.
Serranas, choro a vossa sorte, lamento a vossa desgraça e aconselho-vos a penitência para que vossas almas não desçam ao Averno.
Já é tempo, meus caros irmãos, de me confessar da injusta guerra que declarei a Pe.Diogo José Rodrigues e a sua mãe, hoje defunta.
Para isto precisava de um estilo grandíloquo, mas pobre de mim, que sendo português, não sei falar bem este belo e rico idioma. Todavia vamos lá, e seja-me permitido principiar de mais longe para que a narração se torne clara aos da cidade de Lamego e a outros mais remotos.
José Pinto da Fonseca, professor na freguesia de S. Martinho de Mouros, sonhou uma vez que havia de haver a fortuna de um Buena-Flor, seu vizinho, cuja fortuna era de uns 8 contos de réis. Para conseguir os fins empregou os meios: cuidou de criar relações com Buena-Flor, e mais íntimas com a criada dele. Buena-Flor adoece, e lembra-se ou lho lembrou o professor de receber a amásia civilmente. Ao menos foi o professor quem consultou o Doutor Barata sobre o modo como se podia efectuar o casamento. Foi ele quem arranjou os papéis  respectivos e foi ele que, em nome de Buena-Flor, recebeu a sua amásia em Resende na presença do Administrador,  que então era José Bernardino, de Viseu.
Mais tarde, Buena-Flor teve ciúmes da mulher com o dito professor e, na verdade, houve essa cópula quando ela era solteira e depois de casada. Por consequência, Buena-Flor legou todo o seu pecúlio à Santa Casa da Misericórdia do Porto. Mas como o casamento civil produz, como o católico, efeitos civis, a mulher tinha direito a metade do dinheiro. Morre o pobre homem, e o professor liquidou a metade do espólio em favor da viúva. E como ela não sabia administrar o dinheiro, deu-o ao professor. Sonhou com os 8 contos, vieram-lhe 4…
Tendo-se dado este casamento civil,  horripilante  para todo o cristão, Pe. Diogo José Rodrigues, desta freguesia de Paus, na tribuna sagrada da Igreja de S. Martinho de Mouros, disse que o casamento civil era concubinato e uma invasão dos direitos do pároco. O professor que tinha feito ou aconselhado este casamento e eu,  que o tinha aprovado,  não levamos a bem que Pe. Diogo o combatesse.
Este o motivo por que por três vezes espalhámos por esta comarca, e suas confinantes, uns impressos em que como cutelo da calúnia verberámos o Pe. Diogo e sua boa mãe.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
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