segunda-feira, 6 de julho de 2015

Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (6)*


Cúmulo da malvadez.
Atestámos “que  Pe. Diogo, dizendo missa há pouco, espancara Maria Piôrra e que ela daí a pouco era cadáver”.
Se Pe. Diogo, ou outrem, praticasse um acto tão desumano e das pancadas resultasse a morte da espancada, o Ministério, ainda que não houvesse testemunhas oculares, procedia ex officio a um exame a um exame e corpo de delito. Mas no arquivo do registo criminal não apareceu esse documento.
Se nós soubemos desse crime, porque não acusamos seu autor, sendo nós tão inimigos seus? Porque nos não oferecemos para testemunhas? Para que deixámos impune um réu do maior dos crimes?
Além disto Pe. Diogo diz missa há 36 anos, e a dita Piôrra faleceu há pouco e de morte natural.
Demais a mais, de 1853, ano em que Pe. Diogo recebeu a sagrada ordem de presbítero,  ninguém acusou este Eclesiástico de um tal crime e só agora é arguido, e só por nós, porque eu sou o abade de Barrô, e o outro o professor de S. Martinho de Mouros…
Queixámo-nos “que Pe. Diogo convidara Manuel da Silva Paiva para me assassinar e que, não se prestando este a praticar o acto, encarregara esta empresa a Assenso do Fornelo para se colar na então minha igreja”.
Ó professor com quem nos compararemos? Os sacerdotes da Judeia, que semelhantes ao demónio, que sem proveito faz mal, devorados da inveja desse cruel  abutre que lhes roía as medulas para darem a morte a Jesus, o mataram primeiro com a espada da língua, seriam piores que eu e tu? Meus caros leitores, escutai agora a verdade:
Nos meus princípios vivia eu, como pároco de Paus, na casa da residência paroquial, nas Lages. Esta pobre casa era a toda a hora assaltada por essas belezas, que eu amava. Comiam-me tudo. Não me escapava o pão da giga nem broas do forno, levavam-me as batatas lá do canto da sala, a carninha da salgadeira, nem me deixavam os lençóis, e nem os meiotes. Vi-me pobre, e mal vestido de cotim, não via dez réis. Assentei então fugir desta casa, como fugi, e fui abrigar-me no Fornelo, na minha casa paterna.
Como meus fregueses se queixavam de mim por eu não residir ao pé da igreja, para me desculpar, principiei a dizer que me tinham feito esperas para me matarem e que, por esse motivo, me retirara. Nessa ocasião não culpei ninguém. Agora quis matar moralmente o Pe. Diogo, inventando para esse fim a matéria que pude: sim, disse que ele me mandara matar, quando o Pe. Diogo não era, nem é capaz de matar um cão, esse maior amigo do homem, o símbolo da gratidão, da felicidade e do amor.
Inventei também   que este padre atentara contra a vida de Filipe José Rodrigues. Pe Diogo José Rodrigues, se lhe dessem o ceptro de todo o globo terráqueo, que habitamos e com ele todas as riquezas, não arrancava a vida nem a um seu inimigo, e muito menos ao Sr. Filipe, porque é seu irmão e amigo e cuja vida preza tanto como a sua.
Dissemos que o Pe. Diogo intrigara o pároco da freguesia para onde foi nos subúrbios de Lisboa.
A freguesia em que o Pe. Diogo esteve é Nossa Senhora dos Prazeres d’Aldeia Galega da Merceana, concelho de Alenquer, à distância de Lisboa  de dez léguas, e o Pároco, que tem o título de Prior, é dos arrabaldes de Braga. Para fazerdes uma ideia deste Padre apresentar-vos-ei uma página da sua vida. Ei-la: tinha ele um jumento, que era de uma cor muito pretinha, corpulento, vivo e fino. O Padre tratava muito mal o pobre bruto, e este não sabia como havia de fazer a vontade ao Padre, por que este não o sabia dirigir. Numa bela manhã apareceu morto na estrebaria o animalejo, muito inchado, com a boca aberta e dentes arreganhados. O Padre pega de uma cachamorra e descarrega pancadas sem número sobre o ventre do orelhudo, que foi infeliz na vida e na morte. Como o burro estava muito inchado, as bastonadas produziram um eco como as dos tambores. As mulheres, pensando que o Prior tinha em casa algum descante, correram para lá apressadas. Chegando e vendo o pároco a descarregar cachamorradas no jumento cadáver, perguntaram-lhe a razão, por que assim tratava o triste animal, e ele respondeu “pois este diabo nunca me fez a vontade em vida e ainda agora morre a rir-se e a fazer escárnio de mim”.
Tal é a lógica do Padre e quem assim pensa não admira que tenha uma indisposição com um padre qualquer, e que alguém a tenha com ele.
É certo que este Padre e o Pe. Aniceto Rodrigues d’Oliveira não eram amigos do P.e Diogo, e o Pároco d’Aldeia-Galega escreveu-me uma carta perguntando-me qual fora a conduta do Pe. Diogo nesta terra. Se lá tivessem matéria para o suspenderem não lhes era necessário vir aqui buscá-la.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
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