terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O TEMPO DO ESSENCIAL*


1. Já Santo Agostinho se queixava: "Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei o que é, mas, se me perguntarem e eu quiser explicar, já não sei.” O tempo é um enigma. Se soubéssemos o que é, talvez tivéssemos resposta para a pergunta pelo que somos. Mas realmente, o passado já não é, o futuro ainda não é. E o presente? Quando queremos captá-lo, verdadeiramente ainda não é ou já não é, porque o presente passa, não dura. No entanto, é no presente que vivemos e somos. Só? Não. Porque somos a partir do que fomos, do passado, e na expectativa do futuro, de projectos. Há por vezes a ideia de que o tempo é uma espécie de corredor que se vai percorrendo. Mas não. O tempo é o modo como o ser finito, concretamente o ser humano, se vai realizando.
Qual é então a dimensão mais importante do tempo? Diríamos que é o passado, pois ninguém no-lo pode tirar: ninguém pode anular o ter sido. Dir-se-á que é o futuro, porque ainda não somos o que havemos de ser e é animados pela esperança que vivemos. Mas, afinal, é sempre no presente que vamos sendo. Temos, porém, dificuldade em viver no presente, como já Pascal se lamentava: "Nunca nos agarramos ao tempo presente", preocupados com o futuro ou dispersos com lembranças do passado; embora só o presente nos pertença verdadeiramente, "andamos erráticos por tempos que não são os nossos", passando o tempo na dispersão, o famoso divertissement pascaliano.

2.  M. Lequin fez uma síntese da concepção do tempo em sete pensadores. E lá está Platão, para quem o tempo é uma "imagem móvel da eternidade"; embora o nosso mundo tenha sido feito à imagem de um modelo eterno, o tempo apenas imita a eternidade, num mundo submetido ao devir, onde se nasce e morre. Pascal, no contexto do que ficou dito, sublinha que viver verdadeiramente é esforçar-se por viver no presente, em vez de "delapidar a vida em expectativas ou lamentações". Segundo Kant, o tempo não existe em si mesmo nem nas coisas: o espaço e o tempo são condições formais da sensibilidade, sem as quais não podemos captar os objectos da experiência sensível, os fenómenos. Para Bergson, o tempo é essencialmente "duração", duração viva, vivemo-lo à maneira das "notas de um melodia", formando um tecido. Para Einstein, segundo a teoria da relatividade restrita, não existindo um tempo idêntico para todos os observadores, cada um tem o seu "tempo próprio". Hartmut Rosa chama a atenção para o paradoxo de termos cada vez menos tempo, quando, pela aceleração e inovação técnica, ganhamos cada vez mais tempo. Afinal, fazemos a experiência do tempo, sobretudo porque envelhecemos e morremos e, por isso, Heidegger sublinhou que é a partir da morte que pensamos o tempo: antecipando esse futuro para o qual somos projectados - característica essencial da existência humana é "o ser-para-a-morte" -, há para nós um passado e um presente. Passado, presente e futuro são os três modos do tempo de que a existência é indissociável e é neles que devemos tentar ser nós mesmos, em existência autêntica.

3. Há múltiplas experiências do tempo: uma coisa é o tempo quantitativo, mensurável; outra coisa é o tempo da criação, da beleza, da música, das decisões fundamentais, do amor. Por isso, em grego há duas palavras distintas para o tempo: Chronos, que devora os seus próprios filhos, e kairós, o tempo oportuno, favorável, do amor, da decisão.
Do pior do nosso tempo é a banalidade rasante, o presentismo consumista e saltitante de um momento para outro momento, na dispersão de que falava Pascal, sem consistência nem projecto. O que daí resulta é o vazio e o tédio, na voragem de um tempo hedonista. Por isso, no início de um novo ano, talvez não fosse mau parar um pouco para pensar, meditar e ir ao essencial. Afinal, o tempo é o tempo de nos fazermos, no quadro de um projecto decente e digno. O que queremos fazer de nós, uns com os outros?

4. Deixo aí, nas palavras do filósofo F. Lenoir, esta bela história, apelando ao essencial: "Um sábio tomou a palavra e disse: Escutai a história desta mulher que tem um filho nos braços. Ao passar diante de uma gruta, ouve uma voz misteriosa que lhe diz: 'Entra e apanha tudo o que quiseres. Mas lembra-te de uma coisa: depois de saíres, uma porta fechar-se-á para sempre. Aproveita a oportunidade, mas não esqueças o mais importante.' A mulher entra na gruta e descobre um fabuloso tesouro. Fascinada pelo ouro, os diamantes e as pérolas, coloca o filho no chão e apodera-se de tudo quanto pode. Sonha com o que vai poder fazer com todas estas riquezas. A voz misteriosa diz-lhe: 'Passou o tempo, não esqueças o mais importante.' Ao ouvir a voz, a mulher, carregada de ouro e pedras preciosas, corre para fora da gruta cuja porta se fecha para todo o sempre. Ela encanta-se com o seu tesouro. E só então se lembra do filho que esqueceu no interior da gruta."

5.  Um 2015 abençoado, feliz, pleno de realizações boas e felicitantes!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 3 de Janeiro de 2015
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